Fotografias: Sophia Vieira.
Ar de menina, sorriso vivaço e rasgado, Gisela João é um poço de energia. Exala alegria por todos os poros e é dotada de uma ingenuidade que derrete qualquer um. Canta com a alma contagiando as mentes mais cépticas no que concerne à ala do fado. Tatuada com uma guitarra portuguesa, com uma mala de um lado e com a Mimi (a sua gata) do outro, veio para Lisboa com o objectivo de cantar até a noite não ter fim. Já passou por tascas, casas de fado, Lux, CCB e até entrou em filmes. Actualmente canta no Sr.Vinho e tem um disco prestes, prestes a sair. Quando canta sente-se “completamente exposta ao mundo. Estou nua. Estou a partilhar algo que é muito íntimo para mim!”
Numa reportagem disseram que és uma voz que vai dar que falar em 2013. O que achas desta afirmação?
Fico um bocado assustada. Tudo na vida tem um lado bom e um lado mau e nos últimos tempos dei por mim a perceber que criar expectativa pode ser bom, mas também tem o outro lado da moeda. Tenho um certo receio que as pessoas criem uma imagem de mim e na sua cabeça o sonho de uma Gisela que pode não corresponder às expectativas quando me ouvirem. Até porque ainda não tenho um disco para mostrar.
Mas terás em breve?
Sim, sim, estou a trabalhar para isso, mas ainda não tenho data certa.
O que costumas ouvir? Sei que és fã de música brasileira. Que emoções te transmite?
Muitas, porque no samba-canção, encontro muitas semelhanças com o fado. Estão relacionadas com as letras, com a melodia, e é muito intenso. Fazem-me viajar a sítios… uma boa melancolia. O chorar sem estar triste. Encontro o mesmo no jazz e nos blues. Para mim Ella Fitzgerald e a minha Billie Holliday matam-me. Quando as ouvimos não falamos só da música porque se observarmos bem, quando ouvimos uma Gal Costa ou uma Nina Simone, estamos a ouvir alguém que vive os poemas que canta e sente-se que elas o sentiam de uma forma genuína e pura. Na música não há espaço para mim, Gisela, para o meu ego. Está acima de mim o que eu faço, a música, os poemas. Quando os canto estou a vivê-los. Se eu não viver intensamente esses momentos também não consigo fazer com que as pessoas os vivam.
Peculiar para muitos é o facto de gostares de música electrónica. Como é que ela surge na tua vida?
Bom, quando eu comecei a sair à noite, já não apanhei a vaga do rock e do punk e sim do house e do techno. Andava louca nas festas a ouvir Palstic Man, Jeff Mills, Laurent Garnier. E de certa forma eu acho que está tudo ligado porque estes géneros despertam-me emoções, fazem com que o meu corpo se mexa. Sempre funcionou como um escape porque sempre tive muitas ocupações durante o dia e à noite tudo o que eu queria era alienar-me. Na minha forma de cantar e interpretar estas influências estão lá. Quando nós falamos de música electrónica, esta, embora não pareça, é metrónoma, tum, tum, tum. O fado não, é completamente livre. Todos os beats da música electrónica trazem-me swing e quando estou a cantar fado vou a zonas que não iria se a música electrónica não fizesse parte da minha vida.
Continuando nos meandros electrónicos, cantaste Os Vampiros de José Afonso no Lux com Nicolas Jaar. Estavas nervosa? Assustada?
Assustadíssima. Aconteceu do dia para a noite. O Manuel Reis (proprietário do Lux) convidou-me muito em cima da hora e só no dia anterior ao concerto é que me disseram qual seria a música. Se eu fosse cantar um fado que já costumasse cantar seria fácil porque já conheço a melodia e estaria interiorizada. O que aconteceu foi uma espécie de ensaio em palco. Eu não sabia a letra de cor e encontrei-me com Jaar na mesma tarde enquanto se testava o som. Foi uma experiência total para os dois.
No entanto posso dizer-te que foi das experiências mais arrepiantes que vivi num concerto. A tua voz aliada à música de Jaar, a letra que é bastante forte e toda a conjuntura que se vivia na altura devido à manifestação que iria acontecer no dia seguinte...
As pessoas sentiram de facto a música e para mim foi um momento bastante forte, principalmente devido à manifestação do dia 15 de Setembro. Vivíamos dias dramáticos (que continuamos a viver), mas sentiu-se o momento “Eles comem tudo e não deixam nada”. O Lux estava cheíssimo e as pessoas permaneciam caladas e atónitas.
Voltaste a cantar a mesma música com Norberto Lobo na Manifestação dos Artistas, na Praça de Espanha.
Sim, e foi por mero acaso. Às vezes sinto-me impotente em Lisboa porque não conheço as pessoas e os meios para fazer mexer o que eu realmente gosto. Quebrar barreiras e dar voz ao que sinto. Eu estava doente há uma semana e vi que o produtor de cinema Fernando Vendrell tinha feito um post no facebook acerca de uma manifestação de artistas. Disse-lhe que também gostaria de ir e fazer algo. Ele entrou em contacto com o Alexandre Oliveira do Teatro do Bairro que me ligou a perguntar se queria tocar uma música a capella. Disse logo que estava doente, mas que iria, sem dúvida. Fiquei com receio devido à minha voz, mas liguei ao Norberto Lobo, ensaiámos a música e decidi arriscar. Como não sou muito conhecida, quando me apresentaram em palco não houve muito alarido. Entretanto comecei a cantar e o silêncio manifestou-se. No fim estavam todos aos gritos, todos aos gritos, todos aos gritos. Foi lindo, para lá de emocionante. Depois apareceu logo o João Botelho a dizer: “estás a ver miúda, quando te anunciaram ninguém se manifestou e quando acabaste ficou tudo em êxtase”.
Como é que o João Botelho aparece na tua vida? Li inclusive um texto dele a anunciar o teu concerto no Lux.
Sim, já escreveu dois. Conheci o João através de uma amiga. Quando vim para Lisboa comentei com ela que sentia imensa falta dos meus amigos do Porto e que precisava de companhia para sair, especialmente para noites de house e techno. E assim aparece o João, comecei a sair com ele e ficámos amigos, mesmo amigos.
Ele adora o teu trabalho e dá-te imensa força.
Sem dúvida, acredita muito em mim. Por vezes grita comigo, mas é com uma excelente intenção.
Vamos agora para o cinema. Entraste no filme O Grande Kilapy, de Zézé Gamboa. Gostaste da experiência?
Adorei, foi a minha primeira experiência em cinema. As filmagens foram no Poço do Bispo e foi giríssimo. Comecei a trabalhar às 16h e terminei às 6h00 e nem dei pelo tempo a passar pois foi super estimulante. Eu era um mix entre Maria Callas e uma fadista portuguesa dos anos 50. Agora só estou ansiosa pela estreia do filme.
E preferes cantar em tascas ou no Lux?
(haaaa) Gosto de cantar nos dois, de igual forma. Se falarmos das casas de fado, aí o contexto já é completamente diferente porque há uma seriedade imposta que por vezes é desnecessária. Sentimo-lo mal entramos, o que tira um pouco o à vontade do público. No Lux e nas tascas tenho outro tipo de espectadores, mais heterogéneo (como tu, descontraída e com umas sapatilhas espectaculares) e que não vai aos fados. Gosto particularmente de pessoas que vão ocasionalmente e passam a gostar, é esse o meu desafio. No Domingo estava numa festa privada na casa de um amigo e de repente há um senhor que me vem dizer que é meu fã porque “a minha filha Maria tem 17 anos, odeia fado e adora ouvi-la cantar. Certo dia eu estava em casa, apercebi-me que ela estava a ouvir fado, fiquei surpreendido e questionei-a. Ela disse-me que adora a sua voz, é sua amiga no facebook e já me mostrou os seus vídeos.” São este tipo de comentários que eu adoro e especialmente saber que fui a porta de entrada no fado para algumas pessoas.
Cantas todos os dias?
Sim, no Sr. Vinho, menos às quartas-feiras e ensaio todos os dias. Claro que também canto ocasionalmente em vários espaços. Para tal terão que me acompanhar no facebook.
Já se pode considerar uma profissão?
Sim, desde que vim para Lisboa há dois anos que passei a viver só da música.
Como é que vieste para Lisboa?
Inicialmente mudei-me de Barcelos para o Porto com o intuito de tirar um curso de design de moda. Mas, como canto desde miúda e tenho aquele bichinho difícil de domar, cheguei ao Porto, fui parar a uma casa de fados e acabei por ficar lá. Trabalhava de dia, cantava de noite e o curso acabou por ficar de lado. Fui conhecendo músicos e outros fadistas, e acabei por conhecer o Hélder Moutinho, que é fadista e irmão do Camané. Eu tinha o disco dele e já gostava imenso do seu trabalho. Acabou por me apresentar a vários agentes como uma das grandes vozes do nosso país, dizendo que eu iria dar muito que falar. Propôs-se a trabalhar comigo e disse-me que teria que me mudar para Lisboa. Levou-me ao Sr. Vinho, para que Maria da Fé me ouvisse. Ela gostou e convidou-me a ficar lá logo nesse fim-de-semana. Bom, o cavalo da sorte só passa uma vez, porque à segunda já vai montado e pensei: é desta. Porque o Sr. Vinho é o sítio. Foi de lá que saíram Marisa, Camané e Ana Moura. Tem aquele peso.
Dizes que na tua cabeça és uma princesa da Disney, comentário que eu achei peculiar.
(sorriso) Eu cresci com o imaginário da Disney e acho que todas as meninas deviam viver este lado idílico. Tenho muito orgulho em ter nascido mulher, se tivesse nascido homem teria feito uma operação (risos). Somos muito delicadas e fortes em simultâneo. Adoro espalhar amor, dar, sinto que tenho que pôr as pessoas a rir. As princesas transmitem amor, tocam numa flor murcha e dão-lhe vida.
Também percebi que uma das coisas que gostas muito de fazer é bordar. Um hábito que está cada vez mais esquecido e em vias de extinção…
Adoro bordar e tudo o que é artesanato em geral. Eu sou minhota e os bordados são uma grande tradição. Nasci em Barcelos e vivi alguns anos em Viana do Castelo que tem uma grande tradição nos lenços dos namorados. Aí está mais uma vez o meu lado de princesa. Bordar é uma actividade tão delicada… é uma das formas que encontro em depositar o meu amor naquele pedacinho de linho e brincar com as cores. Era assim que eu gostava a vida fosse.
Que tipo de diva do fado queres ser?
Não sei se quero ser uma diva. Claro que gostava que as pessoas se lembrassem de mim como uma grande fadista e acima de tudo como uma menina que conta histórias. O melhor elogio que me podem fazer é quando me dizem “parecia que estavas a contar uma história e eu vivi-a intensamente”. No fundo, no fundo o que eu gostava que dissessem de mim é que eu fui uma grande artista.