Fotografias: Sofia Taborda.
Da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Marca ponto. Desce dois milímetros. Da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Desce outros dois milímetros. Paralelas, paralelas e mais paralelas. Encher com tinta-da-china. Passava uma tarde inteira nisto. Aliás, fazia cadernos de infinitas linhas paralelas. Exercício longo só com pausa para mudar o lado do vinil e preparar mais mate.
Rapaz longuilíneo, de protuberância nasal aproximada à sua altura, despreocupado no vestir, mas não no sentir. Amigo do seu amigo e de quem mais lhe pagasse para fazer os exercícios de geometria descritiva. Aqueles que aos demais demoravam uma eternidade; para ele uns minutos de compenetração. Conhecido no liceu, claro está, como Tira-linhas.
Seria natural que seguisse artes, arquitectura ou até carreira musical; afinal tocava nos The Pink Samurai, psicadelismo de Campolide de look francês e com relativo sucesso em concursos de MMP. Mas, natural em Tira-linhas é traçar o inesperado. Escolheu ser aluno do ISA. Aluno brilhante, desdenhou mestrado e doutoramento e ingressou em multinacional. Nunca teve a ilusão da pureza. De descendência beirã conhece o que pode custar uma disputa de propriedade. Não se despista pela geometria campestre das imagens da volta à França e sabe que a cada copo de leite, mais mil vacas estarão em fila de espera para ser ordenhadas. A grande paisagem deixa-a para Millet ou Van Gogh, Columbano ou Earle Richardson.
Apesar da rotina, mantém-se atento. Os projectos de fachada e cobertura verde entusiasmam-no, e sempre que vai a Londres não pode evitar visita à cidade jardim de Ebenezer Howard. Admira-se com a renaturalização do espaço urbano do projecto The High Line e com os pocket garden.
Decide candidatar-se às hortas urbanas da CM Lisboa. Ganha concurso pela metade. Ou seja, divide terreno com amigo. Fica com 35 m2. A configuração do mesmo não é a mais tradicional, é redonda. Caprichos do arquitecto paisagista? Está feliz. Já pode voltar a comprar as sementes mais estranhas (ex. beterraba dourada, cenoura de pau roxo, chícharo). Tem local para guardar as alfaias e tempo para explicar ao sobrinho o processo de cultivo e não de transformação e empacotamento. Sabe que daqui a dias será avaliado. Está tranquilo. A renda é baixa e o crescimento da stevia é promissor.
Da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Marca ponto. Desce meio metro. Paralelas, paralelas e mais paralelas. Finas linhas verdes. Já não são cadernos. De lá saem alfaces, rúculas, morangos, beterrabas, courgettes. Faz saladas, chás e pickles e o que sobra dá aos novos amigos. Já não compra alface há um ano! Olha para o viaduto Duarte Pacheco e, estranhamente, respira paz de espírito.