Fotografias: Rui Soares, Primeira Avenida e Reporting Walls.
“I’m not looking for a Wall…”, respondeu João Pedro Vale a Rabi. E a conversa prosseguiu a termo de tradução, não por limitações linguísticas, mas porque João Pedro Vale explicou o seu trabalho a Rabi, disse-lhe que estava em processo criativo e que a sua participação com Nuno Alexandre Ferreira no Walk&Talk – Festival de Arte Pública dos Açores, poderia materializar-se, ou não, em suportes além da parede.
Dois criadores oriundos de dois universos artísticos muito afastados, pouco comunicantes e que, em alguns casos, se definem até por oposição, trocavam impressões de forma liberta e espontânea sobre os seus trabalhos, sobre as suas expectativas e distintas relações com o suporte “parede”. A interacção e a colaboração entre participantes são imagens de marca do festival anual de arte pública, que acontece nos Açores desde 2011. Porém, os propósitos de atenuar as fronteiras entre “alta” e “baixa” cultura e de intersectar as múltiplas categorizações e universos dentro do universo artístico realizaram-se naquele momento, na conversa a que tive o privilégio de assistir e que considero marcante na narrativa do Walk&Talk.
Rabi pertence aos Cyrcle., a dupla americana em ascensão na cena internacional da street art, que passaram por Portugal em 2013. Primeiro a convite da galeria Underdogs em Lisboa, com a exposição Capture the flag: conquer the divide! e a criação de dois murais, um no Parque das Nações e outro junto à Rua das Janelas Verdes. Já em São Miguel, os Cyrcle. reavivaram as consciências em torno da ostracização secular a que os indígenas americanos estão sujeitos, num mural que ampliou a sátira à hegemonia cultural do seu país, especialmente por se tratar de uma região com ligações muitos fortes aos Estados Unidos, a pátria de acolhimento de muitos emigrantes açorianos.
João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira apresentaram no festival English As She Is Spoke, um filme de 2010 que aborda a emigração açoriana num confronto de identidades, culturas, orientações sexuais e de género. Da experiência da dupla nos Açores e da sua reflexão colaborativa sobre o conceito de “arte pública” nasceu Rumor, um projecto composto por 160 registos fotográficos de viagem, organizados em 29 rumores que intersectam paisagens idílicas e snapshots íntimos. Os rumores foram lançados progressivamente durante a estadia dos artistas no festival, com recurso à aplicação Instagram e à partilha no Facebook. Por fim, Rumor materializou-se num mural catalográfico composto por Polaroides. Não se fixou numa parede das ruas de Ponta Delgada, viralizou sim a vivência do lugar nas redes sociais e foi exposto em Novembro de 2013 na Pequena Galeria em Lisboa.
“It is like talking to a wall” traduz-se “é como falar para a parede”, a expressão que define, também quase literalmente, a relação entre os protagonistas da arte urbana – hoje tão em voga e em ritmo ascendente pelos “walls of fame” da capital, e os “outros” artistas. Serão estes “outros” os mais convencionais, os mais eruditos ou então os “verdadeiros artistas”? Diferenciam-se pelos suportes que utilizam e podemos já encaixar Rigo 23 e os seus murais no primeiro grupo? Ou agrupam-se por legitimação e deveríamos esquecer que Alexandre Farto, “Also Known As” Vhils, começou aos 13 anos a pintar comboios para o sentarmos definitivamente no segundo? E como classificar a participação de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira no Walk&Talk, de experiência transartística?
O mais interessante é que a resposta a estas questões já não é literal, muito menos dogmática. Permanece em aberto, é fluida e poderá sustentar-se a partir da conjugação da crítica com a estética, com a narrativa ou até com “políticas de gosto”. A expressão que Paulo Cunha e Silva tão oportunamente empregou no enquadramento da visão da sua vereação para a cultura da cidade do Porto: “(…) A política também é um exercício de bom gosto, mas não deve escolher entre situações mais populares e outras mais eruditas. Deve articular todos os gostos. Não estamos a programar para Serralves, estamos a programar a cidade, que é feita por pessoas diversas. Poderão aparecer, no âmbito das propostas da câmara, projectos culturais com os quais não me identificaria, se fosse curador ou programador, mas que fazem sentido na lógica da cidade multivariável e multipolar, na lógica da cidade líquida, que é um bocadinho a minha ideia programática, inspirada no conceito de Zygmunt Bauman de sociedades líquidas (…)”.
Não se tratando da gestão cultural de uma cidade mas de atitudes individuais – dessas mesmas pessoas que criam as cidades, em oposição a paredes construídas por blocos catalogados sobre vazios de comunicação, elejo espaços abertos à partilha e circulo voluntariamente entre criadores e universos artísticos. O que não traduz um desejo obscuro de doutrina ou estandardização, antes pelo contrário. Salvaguardar identidades e contextos singulares é tão vital quanto criar oportunidades de conhecimento mútuo, de intersecção e, quem sabe até, de possível contágio. Holly Crawford advoga no seu livro Artistic Bedfellows, que as práticas colaborativas cunham a acção artística contemporânea (remato com:) seja qual for a parede encontrada.