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Pode dizer-se que existe uma arte pré-duchampiana e pós-duchampiana. Produziu pouco e espaçadamente e teve enormes hiatos criativos. Não produziu nada durante mais de 20 anos e foi jogador de xadrez profissional. Desde a sua primeira grande intervenção pública em 1913 até à sua última obra há uma presença que se reflecte nas obras de outros artistas. É um artista de artistas e corresponde ao imaginário de negação de artista em si mesmo e da anti-arte. Foi Marcel Duchamp que fez com que arte seja o domínio das nossas expectativas. Uma obra de arte pode ser qualquer coisa mas nunca pode ser uma coisa qualquer.

Marcel Duchamp era paradoxal e desconcertante. Calmo, pausado, com uma serenidade que nunca abandonou, inerente a uma personalidade reservada. Saía pouco, não via muito os amigos e não era frequentador habitual de exposições e museus. Levava uma vida de rapaz de café e teve dois grandes amigos, Francis Picabia e Man Ray que muitas vezes o fotografou e à sua obra e com quem colaborou em vários projectos.

Duchamp e Picabia conheceram-se em Paris em 1911, viajaram até Nova Iorque em 1915, onde conheceram Man Ray. Influenciaram-se mutuamente, mas sempre mantiveram a sua própria identidade artística. Duchamp propunha acima de tudo uma atitude de espírito e revelou-se numa das mais interessantes e surpreendentes personalidades. Foi um dos principais impulsionadores do dadaísmo, corrente artística que rompe com as formas de arte tradicionais e defende a espontaneidade.

Uma obra com cariz provocatório

Dadas as condicionantes é completamente impossível resumir a vida de Duchamp a duas páginas de artigo, como tal vou optar por falar sobre dois grandes momentos da sua vida baseados nas obras Nu Descendo a Escada, Fonte e respectivos ready-mades. Em 1912 Duchamp tenta apresentar a sua mais recente e singular obra Nu Descendo a Escada no Salão dos Independentes, em Paris. Surpreendentemente pediram-lhe para retirar a peça antes da abertura, numa atitude que transtornou o artista. «No grupo mais avançado da época algumas pessoas tinham escrúpulos incríveis, mostravam uma espécie de medo. Pessoas como Gleizes que era mesmo assim extremamente inteligente, decidiram que o Nu não tinha a ver com a linha que já tinham previsto», contou o artista no livro Marcel Duchamp, Engenheiro do Tempo Perdido, de Pierre Cabanne. Duchamp «queria criar uma imagem estática do movimento: o movimento é uma abstracção, uma dedução articulada no interior da pintura, sem que se saiba se uma personagem real desce ou não uma escada igualmente real. No fundo, o movimento é o olho do espectador que o incorpora ao quadro». Revoltou-se contra um comportamento da parte de artistas que considerava livres e arranjou um emprego tornando-se bibliotecário na Sainte-Geneviève, conseguindo assim afastar-se de um meio que o estava a desagradar. Esta obra voltou a fazer sucesso na primeira grande manifestação de arte contemporânea europeia nos Estados Unidos, o Armory Show, em 1913. Esta mostra foi fulcral na carreira do artista, transformando a opinião americana e mudando o espírito em que os artistas trabalhavam. Os visitantes ficaram surpreendidos com as obras modernas que violavam o seu conceito de arte e Duchamp chegou aos Estados Unidos como um missionário da insolência… Foi um trabalho marcante que correspondeu ao fim de um ciclo e que de certa forma mudou a sua vida, pois foi a partir de Nu descendo a Escada que o artista se desligou da pintura para enfrentar a sua significação. «Não posso fazer um quadro, um desenho ou uma escultura. Não consigo de todo. Seria necessário que reflectisse por dois ou três meses antes de me decidir a fazer qualquer coisa que tenha algum significado…seria preciso que encontrasse esse sentido, antes de começar», reflectiu no livro Marcel Duchamp, Engenheiro do Tempo Perdido. Integrou-se completamente no ritmo nova-iorquino e foi passado pouco tempo que entrou no emblemático mundo dos ready-mades, que por sua vez adquiriram uma importância considerável na sua obra. Se, como afirma Duchamp, a palavra “arte” vem do sânscrito e significa “fazer”, tudo se torna mais claro. Os ready-mades, objectos de uso corrente retirados do seu contexto, assinados transformam-se em obra de arte. No livro Duchamp de Janis Mink, destaca-se uma carta escrita pelo artista à sua irmã Suzanne, datada de 1916, em que lhe pede para cuidar dos seus pertences e arte deixados em Paris e pedindo-lhe que escrevesse algo acerca do Suporte de Garrafas. «Agora, quando subires as escadas, tu vês a roda de bicicleta e um suporte de garrafas no meu estúdio. Comprei-os como a uma escultura já acabada mas eu tenho uma ideia a respeito do suporte de garrafas. Ouve: Aqui em Nova Iorque comprei alguns objectos de estilo semelhante e chamei-lhes ready-made. Tu sabes suficientemente inglês para perceberes o significado de “já acabado” que eu atribuí a estes objectos – assinei-os e coloquei uma inscrição em inglês. Vou dar-te alguns exemplos: comprei uma grande pá de neve, na qual escrevi “Em Antecipação ao Braço Partido”… Não faças um esforço demasiado para entenderes isto de uma forma romântica, ou impressionista, ou cubista, pois não tem nada a ver com isso (…)» Este foi o seu primeiro ready-made. Mas, foi a sua Fonte que ficou marcada na história de arte, devido a toda a carga anti-arte que lhe é intrínseca e com a qual voltou a ter dissabores devido a mais uma das suas atitudes provocatórias. Em 1917 tinha sido fundada em Nova Iorque a Society for Independent Artists, que tinha como base o parisiense Salão dos Independentes. Duchamp era um dos directores do grupo mas como o seu segundo nome se baseava em provocação decidiu enviar um urinol para a exposição Quatro Mosqueteiros, sob pseudónimo, assinando R. Mutt para evitar uma ligação directa a si. A peça foi suprimida da exposição e Duchamp voltava a viver o dilema com a Sociedade dos Independentes, uma vez mais por detrás desta atitude. Voltou a repensar o facto de não conseguir fazer nada que fosse aceite de imediato.

A sua proposta é que a arte ficasse solta das amarras racionalistas. Defendia o absurdo, a incoerência e a desordem, deixando um legado importante para as experimentações artísticas. Levava o público a reflectir a partir da confrontação com algo novo e inesperado. O objecto era a obra de arte e o objectivo residia na reflexão sobre o mesmo e não na contemplação.

 

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