Três da manhã e toca o despertador para subir à cratera de um vulcão activo e ver de lá o nascer do sol, 24h depois estamos a descer ao interior da cratera de outro vulcão para ver o fogo azul e 12h a seguir a essa poisamos noutra ilha para finalmente pensar sobre o que se passou.
Tudo começa em Cemoro Lawang, uma pequena aldeia de montanha em Java onde os turistas só vão para chegar a Gunung Bromo, o tal vulcão, cuja última erupção foi há imenso tempo (Março de 2016) apesar de continuar activo e a fumegar dia e noite. A guardá-lo está o Mar de Areia, um deserto preto criado pelas cinzas do vulcão e que vamos ter que atravessar de lanterna a meio da noite até chegar ao topo da cratera, a 2329m de altura. Às 3:30 começamos, somos três e sabemos que aquilo está mais ou menos à nossa frente, tirando uns quantos montes e vales. Mas isto de andar às estrelas sem astrolábio é mais difícil do que parece e andámos perdidos no Mar de Areia a ver passar uns cavalos e à espera de tropeçar num vulcão. Antes do desespero lá encontramos uma escadas a que não se vê o fim, tem que ser por ali. Depois de muito subir chegamos ao cimo ainda de noite. E o cimo, meus caros, o cimo deste vulcão que ainda borbulha e cospe, tem 70cm de largura. Do lado de fora o Mar de Areia, do lado de dentro um monstro acordado cujo o barulho é mais ou menos o do tabuleiro da ponte 25 de Abril misturado com as furnas da Madeira, rematado por um fumo branco espesso e uma chuva de cinzas constante. Um conforto, digo-vos.
Ali ficamos sentados à espera do sol e, quando ele finalmente vem, é que percebemos a brutalidade de onde estamos. Lá em baixo uma solidão de nuvens e areia infinita, outro vulcão de um lado e todas as cores do começo de um dia, do outro. E nós sozinhos, sete agora, cobertos de cinza e encolhidos no topo de uma besta que vai ameaçando sempre em ciclos de barulho e cheiro a ovo podre.
Em havendo o sol todo voltamos ao caminho, chegados a casa refazemos as mochilas e apanhamos minivan, autocarro e jipe até Bondowoso, uma terriola perto do próximo vulcão: Ijen, a 2799m de altura e com o maior lago ácido do mundo dentro da sua cratera.
Às onze da noite desse dia acordamos e vamos para a base do vulcão que vamos subir, descer e subir para apanhar outra vez o sol nascente. Depois de quase duas horas muito íngremes pela madrugada fora, chegamos ao topo e olhamos para dentro do precipício onde nos vamos meter. Rocha pura, sem caminho, vamos lá, mais uma horinha, que para baixo é tão fácil.
Enquanto descemos com todo o cuidado possível para evitar partir uma anca quais idosos, passa por nós um mineiro a fumar um cigarro e a carregar 70kg de enxofre às costas cratera acima. Um operário vindo directamente do inferno que ainda parou para nos falar da sua vida e ganhar mais uns trocos com turistas que gostam de tirar fotografias. Trabalha ali há três anos, tem os ombros cobertos de cicatrizes, faz o caminho ida e volta três vezes por dia para ganhar o ordenadão de 7 cêntimos por quilo, diz que é muito e por isso quer continuar mais dois anos. Por causa da exposição ao gás sulfúrico, enquanto os turistas alugam máscaras para uma hora, eles, seminus, têm uma esperança média de vida de 45 anos. E isto é hoje, assim se vive.
A procissão ao centro da terra faz-se por causa do fogo azul: gás sulfúrico em ignição que emerge das falhas a uma temperatura de 600° e que se transforma em chamas azuis que podem ter até 5m de altura. Nas fotografias é só aquela coisa ali atrás a cheirar a podre depois das nossas caras de apocalipse.
Subimos para poder respirar enquanto uma multidão está agora a começar a descer. E nós fugimos para o ponto mais alto e afastado, a um par de quilómetros, onde veremos a aurora de um lado e um imenso lago ácido e azul turquesa do outro.
Às seis da manhã já sei que acabei de ter dos dias mais incríveis desta viagem. Mas agora é tempo de dormir. Faz-se o caminho de volta a pé e acrescenta-se dez horas de viagem e um novo fuso horário para finalmente chegarmos ao destino: o sono.
Pode não vos parecer assim tão alto nem tão longe nem um sol tão diferente, mas, em verdade vos digo, subir a um vulcão a pé e a meio da noite será sempre do caraças.
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* Este texto não é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.