Iniciada pelos futuristas italianos, a arte da performance passou a ser reconhecida como meio de expressão artística independente na década de 70. Uma época auge para a arte concetual e para a demonstração e execução de ideias que determinados artistas só conseguiam transmitir através da performance. Na verdade estes “espectáculos” ao vivo sempre foram uma forma de romper com os convencionalismos da arte bem aceite, numa forma de liderar o processo de rutura com as tradições. É em todo este processo que se enquadra a artista Lúcia David, uma “enfant terrible” da arte que vive a frustração de não conseguir comunicar – em Portugal – os seus anseios através da performance, sendo em Judy Chigago, Franko B e Orlan que encontra as suas grandes influências.
De acordo com o que diz Roselee Goldberg no livro A Arte da Performance, esta “serve para comunicar diretamente com um grande público, bem como para escandalizar os espetadores obrigando-os a reavaliar os seus conceitos de arte e a sua relação com a cultura”. Em criança Lúcia agarrou numa série de frascos com álcool e no seu interior colocou cobras. Mais tarde, para uma série, distribuiu, por diversos frascos com álcool, os preservativos usados dos namorados com quem tinha estado. Para concluir escreveu uma história sobre a possibilidade de preservar um namorado em formol. Numa outra performance recolheu de amigos os piores insultos que haviam feito a uma mulher, em seguida fez uma performance de cinco minutos em que comeu três caixas de morangos cheios de mel, ao mesmo tempo que os insultos eram projectados no seu corpo.
Em 1964 Vostell apresentou a sua disruptiva performance You, sobre a qual mais tarde explicou que pretendia “confrontar o público de forma satírica com o caos, com as cenas de horror mais absurdas e repugnantes, de modo a despertar consciências (...). O que é importante é o que o público leva consigo como resultado das minhas imagens e do happening”. É esta a linha de pensamento de Lúcia, uma artista que começou nos metais, passou para escultura, seguiu para a instalação, performance e os livros de artista – área em que fez um mestrado – e em que todo o seu trabalho é performativo.
Na base da sua frustração está o facto de o público muitas vezes não entender que por detrás de um trabalho, aparentemente decorativo, se encontra um manancial de mensagens transmitidas por uma dor emocional e física como vemos na exposição What you Don’t Know Will not Hurt You. Trabalhou as superfícies, de forma simpática e decorativa, com base em livros sobre guerra, sobrevivência, Saddam Hussein, morte e canibalismo. “Se a exposição pudesse ser invertida e as pessoas percebessem...”.
Foi em Anadia que descobrimos o seu refúgio e tivemos uma longa conversa no pequeno ateliê onde está sempre a trabalhar, conectada com a internet e televisão. A artista começou por estudar arte, seguindo para design de moda, um percurso importante que “faz parte da minha cabeça no que concerne à conceção, em termos de trabalho da cor, e desenvolvimento de séries. Em vez de fazer coleções desenvolvo séries”. Trabalha a questão da mulher na sociedade, a violência doméstica, o visceral. A sua forma de expressão culminou na parede através da tela. “Dá-me uma liberdade enorme em termos de superfície para escrever.” É aqui que a sua arte passa de uma dor emocional a física, ao agarrar na agulha e bordar o papel, telas e até pedras. Um diálogo entre o corpo e a agulha que vai escrevendo ao mesmo tempo que lhe desfere dor nos dedos e se entranha na pele. Lúcia escreve a bordar e nas suas telas lemos trechos de textos por si pensados ou retirados das páginas de livros que a influenciam. “O meu trabalho é de escravo neste universo das mulheres de colar e bordar.” Mas de onde lhe vem a apetência para bordar? “Vem da minha avó e da minha mãe que era professora de bordados”. Com esta influência prematura desafiou-se a bordar em papel. “Escrevo, bordo e perfuro”.
O processo passa por inicialmente picotar e depois cobrir com linhas de várias cores que simbolizam o som e o tom. Se forem vermelhos e pretos sabemos que está a gritar, as cores suaves usa-as para falar mais baixo ou sussurrar. É obsessiva/compulsiva e não se envergonha destes seus traços de personalidade, muito pelo contrário. Imersa no mundo da informação, canaliza-a para a sua obra. Adora trabalhar saturando a cabeça com os mais diversos panos de fundo. No meio da compulsão, por dia, vê várias séries, filmes e muita política. São histórias visuais baseadas num mundo em ruptura social e política. “Eu só vejo o lado da ruptura, não consigo ver o lado positivo. Sou anti-ser humano e catastrofista”.
Trabalha essencialmente com objetos pessoais e presentes na família, daí o lado biográfico. Nela não encerra o sentido da reciclagem. “Os livros para mim são muito importantes, leio-os e depois uso-os como material para o meu trabalho. O livro significa uma carga de material que pode vir pela palavra, texto ou forma. Ele pode ser destruído e transformado em objeto”. A sua relação com a literatura e com os livros é semelhante à descrita por Walter Benjamin na sua obra O Narrador: “na sua solidão, o leitor do romance apodera-se da sua matéria muito mais egoisticamente do que qualquer outro. Está disposto a apropriar-se inteiramente dessa matéria; de certa forma a devorá-la. Sim, ele aniquila, devora a matéria, como o fogo devora a lenha na lareira. A tensão que que percorre o romance assemelha-se muito ao sopro de ar que alimenta a chama e estimula a sua dança.” É também através deles que fala do conceito tempo: passado, presente e futuro, este ainda num estado embrionário.
Qual é a importância do tempo e de que forma é que ele se reflete na sua obra? O tempo para Lúcia é um conceito completamente inventado, não existe. “Sou mais adepta das várias dimensões sobrepostas. Nós envelhecemos e a nossa pele vai-se desfazendo. Os livros e o papel têm também esse processo. E eu estava a trabalhar com a questão da cor dos livros, fazendo um paralelismo entre o seu envelhecimento e o da pessoa e por isso trabalhei com livros de várias idades”. Na sua peça Embrio questiona a degradação e o não envelhecimento. “O restauro por exemplo consiste em retirar idade às peças porque são impedidas de envelhecer”.
A par com a arte de ler e bordar estão as histórias por si criadas. É influenciada por Marguerite Duras em termos de frases curtas e cortadas e teve também uma grande influência de autores ingleses como Ian McEwan ou David Lodge. São histórias onde vemos um cunho de realidade e de ficção e geralmente escreve-as em cinco minutos. Short stories que muitas vezes partem de pequenos apontamentos do período da sua avó. Em seguida dá-lhes um cunho pessoal e remete-as para o universo inglês.
Lúcia já expôs um pouco por toda a Europa, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha ou Lituânia, continuando a trabalhar no tema das mulheres. Não consegue dar a volta porque existem demasiadas coisas para dizer. “Tenho uma crise constante. Um dia, numa aula um professor disse-me: 'tenha cuidado nunca embeleze as suas peças' e isto nunca me saiu da cabeça. Às vezes pareço uma costureirinha e não sei se é um handycap o facto de tentar fazer tudo de forma perfeita”.