DIÁRIOS DO UMBIGO

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Olhando para trás, ou para dentro, destes quase dois meses e 3942 quilómetros, o tempo ganha nova medida e elasticidade: parecem ter passado 5 minutos e metade de uma vida ao mesmo tempo. É difícil, ainda, organizar tudo o que se tem passado em pastinhas de emoções para no fim preparar um texto bonito. Mas é tempo de falar de pessoas. Tentemos.

Ao entrar no Cambodja os meus olhos emburrecidamente ocidentais dizem-me que estamos a entrar noutro mundo. Acabou-se a terra dos sorrisos, aqui as pessoas amontoam-se em olhares de porteiros de discoteca do Cais do Sodré, desconfiam e fazem-nos desconfiar, só se aproximam de nós para vender o que quer que seja, agressivamente e acima do preço que prometem. Até pena vendem, em crianças descalças, de olhos grandes, com bebés ao colo, que nos tocam, até lhes pagarmos pelo que estamos a ver – e não queremos ver.

Mas afastamo-nos da fronteira e chegamos aonde se mistura vida normal com um turismo avassalador. Aí a agressividade quase desaparece por detrás de sorrisos muitas vezes mal ensaiados. Ainda estão a decidir se gostam de nós, nas cidades. O assédio dos tuk-tuks é constante, a negociata dos vendedores de tudo também. Fica-me a ideia de que nos estão a tentar sugar tudo, os preços mais que triplicam desde a comida aos transportes e a única razão é acharem que todos somos inquestionavelmente ricos e que devemos pagar – e bem – por tudo o que aqui fazemos.

Ao sair dos centros tudo muda, claro. Aqui os cambodjanos riem-se de nós, apontam os nossos narizes grandes e riem-se, não sabem o que estamos ali a fazer, não percebem o que é que para nós é assim tão diferente ou tão curioso que nos faz estar constantemente de selfie em riste. Riem-se. E as crianças deles riem e correm em êxtase só para nos mandar um hello. Gostam de nós, aqui. Oferecem-nos comida a provar, chá a beber, casas-de-banho ou guarda-chuvas se precisarmos. E riem-se e seguem a sua vida como crianças grandes. A verdade é que aqui quase só há crianças. Há 36 anos o Khmer Rouge eliminou uma geração num genocídio de quase 4 anos, hoje a idade média da população é de 22 anos. Os que cresceram e os que sobreviveram parecem estar agora a aprender a ser livres, e por isso riem como crianças, como se finalmente pudessem respirar.

Aqui, tal como na Tailândia, come-se durante todo o dia. Há bancas de tudo desde as 6 da manhã até ao fim do dia, não vá apetecer um arroz frito com espetadas antes de ir trabalhar. Come-se quando se tem fome e aquilo de que se tem fome. Não há regras. E isto faz parte do lote de simplicidades perdidas para aquilo a que nós chamamos de civilização. Enquanto a ASAE faz cruzadas por doses individuais de azeite e pela abolição do creme da bola de Berlim, aqui assam peixe e marisco na areia da praia e vendem fruta fresca cortada fora de um ambiente de alumínio, imagine-se! E sobrevive-se. Tão mais simples e levemente. Isto estende-se também ao trânsito. Quem acha a rotunda do Marquês uma confusão havia de ver as 10 faixas inexistentes em cada estrada para todo o tipo de veículos.  Aqui conduz-se à direita, sim, mas isso só se não der jeito ir pela esquerda a seguir ou mais logo. E a coisa dá-se! Claro que não pensaria importar o desaparecimento do código da estrada e – deus nos ajude – dos cintos de segurança e todas as outras obrigações, mas assalta-me muitas vezes a certeza, desde que cheguei, que temos muito a aprender com esta gente em respiração, leveza, riso. O nosso ambiente mais que esterilizado e regrado que obriga a trinta licenças e duzentas ervas para se poder vender um gin, que nos prende em horas de jantar, de almoço e de trinta e sete licenciaturas para nos podermos sentir alguém e depois tirar umas férias, parece-me bem mais distante da realidade do que o que se vive aqui, parece-me bem mais artificial. Sim, ok, não há autoclismos e ter diarreia pode ser mais comum, mas também ninguém nos olha como criminosos se decidirmos comer um hambúrguer sem tofu ou acender um cigarro.

As pessoas aqui lembram qualquer coisa de mais humano.

Mas, senhores, alongo-me: é tempo de aligeirar isto e ir ali petiscar qualquer coisa não embalada individualmente.

PS: acabaram de me roubar, já lhes acho muito menos graça agora.

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