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Fotografias: João Miranda.

Devido às limitações de espaço inerentes à nossa edição impressa não nos foi possível publicar na íntegra a entrevista feita a João Louro para edição nº53 da Umbigo. Aqui fica então publicada a versão integral da entrevista.

Fomos conversar com João Louro sobre o que o move enquanto artista e acerca do seu projecto que representa Portugal na Bienal de Veneza, levando consigo o seu pensamento que não se encontra na bagagem, à procura do reflexo das imagens nas salas e do olhar do observador. Tem um percurso já firmado e consolidado, revelando particularidades específicas. O corpo do seu trabalho desenvolve-se utilizando vários suportes visuais, desde a pintura, escultura, instalação, vídeo e a fotografia. Influenciado pela arte conceptual e minimal, com uma atenção especial às vanguardas, a sua obra exprime enquanto registo do tempo, a sua visão da arte e da cultura. É um respigador de imagens e reapropria-se delas, centrando-se basicamente no seu estudo e na sua visualidade na cultura contemporânea num mundo recheado de imagens, que surgem por todo o lado, e eis a sua expressão: “Um mundo onde há imagens a mais”. Daí ter começado a apagá-las criando as Blind Images, onde aliás ficou mais conhecido por este género de trabalhos. Nessas composições, o artista cria imagens que não estão visíveis, estando por isso ausentes, resultando na impossibilidade de ver o que lá está latente. Essa obstrução e negação faz com que se abra uma porta, que é a da invisibilidade. Para além da imagem, interessa-se pelo universo da linguagem nas suas várias potencialidades e recorre à criação no plano literário com referência a uma série de autores sem esquecer a área do cinema. Quanto ao aspecto da palavra, no campo do saber realiza um exercício plástico ao rasurar e apagar os conteúdos, produzindo livros que não se podem ler. A estratégia da rasura é para nos fazer lembrar que o acesso está negado em que é devolvido ao espectador como fazendo parte integrante no trabalho onde a obra se revela essencialmente como espelho. O artista assume-se como um reorganizador do universo visual do mundo. É justamente o imperativo de testemunhar o tempo em que vive que abre espaço para a criação.

Como surgiu o convite para a Representação Oficial Portuguesa na Bienal de Veneza? Já esperava ou foi uma surpresa para si?

Os convites para a Bienal de Veneza são sempre convites oficiais, numa articulação entre a Secretaria Geral de Cultura e a Direcção Geral das Artes. A Bienal de Veneza é o maior evento de arte do mundo. O que tem mais visitantes e onde, naquele período em que decorre, ao longo dos 7 meses, atrai todos os agentes que estão de uma forma ou outra relacionados com o universo da arte: artistas, espectadores, curadores, directores de museus, coleccionadores. É portanto um evento muito importante e é de prever que haja sempre muitos artistas interessados em participar. A concorrência é grande e por isso, para quem é escolhido, é sempre uma surpresa.

Pode explicar sucintamente a sua intervenção plástica que irá fazer. Foi baseado e relaciona-se com as suas conhecidas composições Blind Images ou foi um projecto inteiramente diferente? Foi pensada numa cumplicidade e articulação, em equipa com a Comissária da Bienal María de Corral?

O projecto para a Bienal I Will be your Mirror, Poems and Problems, foi pensado especialmente para a Bienal. Contudo, “este pensar” o projecto é feito, desde o início, numa estreita cumplicidade com a curadora. Não pode ser feito de outra forma. Desde as primeiras visitas que fizemos em conjunto ao Palácio Loredan (local da representação portuguesa), foram surgindo ideias e motivos para avançar numa direcção e ir abandonando outras possibilidades. Foi um trabalho a 4 mãos, numa discussão de confiança mútua. Aliás, essa confiança com Maria de Corral nasce muito antes... já tinha trabalhado com a Maria em 2005, quando foi a directora, a convite da Bienal de Veneza, a criar a exposição central da bienal. A minha intervenção foi ganhando forma, a partir de discussões com a curadora e anichou-se em questões sobre a invisibilidade, com ideias e autores que, de uma forma ou outra, reúnem essas características. Foram, por assim dizer, essas directrizes que guiaram a minha intervenção. Serão apresentadas 12 obras que, articuladas entre si, conectam o mundo invisível com o mundo visível.

O que significa o título I Will be Your Mirror - Poems e Problems? Em que medida se insere no tema geral da Bienal All the World’s Futures?

Um dos temas fulcrais do meu trabalho, prende-se com a revisão do universo visual, sob várias formas. E se eu, como autor, através da obra, conseguir ser o espelho do espectador na sua complexidade, através de questões que vão desde o âmbito conceptual ao poético estou, nesta actividade que é a arte, sempre de tentativa e erro, a aproximar-me da minha “carta de intenções”.

E creio que a proposta que desenvolvi se conecta num determinado momento com All the World’s Futures porque, como é expresso, o mundo será feito de muitos futuros e este, aquele que apresento, a reflexão sobre a sobre-exposição, sobre o hiper-real, sobre o desgaste da incidência da luz, na criação de umas trevas luminosas e, seguindo outro caminho, convocando o invisível, o latente, etc. todo o discurso feito através de obra que apresenta, relatado a cada pessoa em particular, como se fosse secreto ou como se fosse um segredo, criando uma distância a essa sobre sobre-exposição, estou certo que será um dos grandes temas do futuro.

João Louro 4

O que pretendeu fazer? É um trabalho inteiramente novo; dado que teve tempo para ir pensando, revelado com tantos meses de antecedência antes da Bienal? Pensa que conseguiu atingir aquilo que desejava?

A arte é feita de tentativa e erro. É a única actividade humana que não tem contraditório. A arte está sempre certa. E isso é um problema especifico do universo da arte. Um médico pode dizer-se se é bom ou não... um arquitecto também. Todos... menos o artista! A única coisa que se pode dizer sobre um artista é se fala do seu tempo ou não. E como sabemos que a arte é um registo do tempo, uma espécie de filtro do tempo, podemos dizer se um artista é mais pertinente que outro. Mas há poucas ferramentas, ainda por cima baralhadas com elementos exteriores à arte, como por ex., mercados especulativos, entre outro ruído, que desalinham a compreensão.

Nesta representação serão apresentadas 12 obras. 10 obras são inéditas e 2 obras já existentes (destas 2, uma delas nunca foi apresentada publicamente). E o resultado é muito interessante a meu ver. Estou, sobretudo, ansioso por ver as obras no local para as quais foram pensadas.

Houve algum condicionamento especial para a produção física da obra/montagem no local de acolhimento da instalação, após a escolha do espaço expositivo? Pode desenvolver.

Desde o início, logo nas primeiras visitas ao Palácio Loredan, sentimos, eu e Maria, que o espaço, apesar de muito bonito, era avassalador. Estamos a falar de uma biblioteca, num palácio do sec. (?), que tem uma arquitectura sumptuosa, com salas em que o pé-direito tem 5,20, com uma mezzanine a 3,90 m a correr toda a parte superior das 6 salas que nos foram adjudicadas, onde há pavimentos venezianos, outras salas com ripados em madeira, lustres de Murano, etc., etc. Toda esta beleza do palácio é, ao mesmo tempo, um fardo e uma contrariedade. Contudo, tentamos através de uma gestão do espaço, pensar as obras de acordo com essas dificuldades tirar partido delas. E, nalgumas situações, anulamos o espaço, através de construção de paredes que recebem algumas obras.

Pode-se considerar que este convite é uma espécie de consagração relativo à sua carreira, com um percurso já consolidado, apesar de já ter participado na Bienal de Veneza há dez anos. Pensa assim. É isso? Pensa que este convite vai mudar alguma coisa do seu trajecto acerca do seu posicionamento artístico e estético ou é simplesmente mais um projecto?

Eu tive a coragem e a sorte de ter inventado a minha vida. Fi-la à minha maneira. Neste universo não há regras. Não há cartilhas ou ensinamento possível. Não há universidade. Há sim um “chamamento”, que é suportado por um estado de resiliência. A arte para mim foi mais importante do que tudo o resto.

Recordo sempre, como exemplo, que depois de terminar a II Guerra Mundial, a questão que se colocava não era se havia bienais ou museus, se havia alguma consagração a recolher, se alguma dessas situações poderia alterar a vida do artista. A questão nem sequer era se havia papel ou um lápis para desenhar... Na realidade a guerra tinha arrasado tudo, ceifado expectativas e esperança e, mesmo assim, havia artistas. Percebe o que quero dizer quando me refiro ao “chamamento”? Isso é o mais importante que tudo! É o ar que se respira. Portanto, respondendo à sua pergunta, a Bienal de Veneza é um marco importante na vida de qualquer artista, é um dos picos altos na curva helicoidal que é vida de um artista e pode mudar alguma coisa, ou pouco ou muito... mas, com certeza, não mudará o estilo de vida que inventei, no qual incluo o trabalho que produzo, que é feito de maturação, investigação, sensibilidade e atenção aos “sinais-do-tempo”.

Como consegue conciliar nas suas obras o enredo do aspecto social/político com o tratamento artístico/poético? Aliás, há quem o rotule de artista político. O que pensa desta afirmação?

Eu sou um artista político, porque trabalho na Polis. E na Polis somos todos políticos. Mas a “arte política” não me interessa, acho-a presunçosa, superficial, temporal e cheia de tiques de “política na arte”. Querer mudar o mundo não é o meu objectivo. Aliás, se a poesia inventa a linguagem, está na poesia a forma política mais pura, sem que com isso pretenda mudar o mundo. Como disse atrás, o que faço e que proponho em obra, é falar ao maior número possível de pessoas, mas sempre de forma pessoal e secreta, em silêncio. Tudo o resto para mim é propaganda

Para si, como situa hoje, a realidade presente no mundo actual da arte versus artistas? O que tem a dizer? Acha que a arte poderá ajudar a superar o actual período difícil no plano social, político e económico?

Creio que a arte é a actividade que mais se aproxima da liberdade. Nada se assemelha ao grau de liberdade que a arte por si só contém. Sabendo que não existe “liberdade pura”, sei que a arte é a actividade humana que mais se aproxima desse conceito. É uma prática livre. Nesse sentido, o artista é um dos seres mais livres que existem. Isso, por si só, esse previlégio, é uma oferenda. Agora o que se faz com essa liberdade toda, é uma questão complexa e cheia de armadilhas.

O trabalho da arte não é imediato. Não muda imediatamente, nem faz revoluções. Tem um tempo lento. Tem o tempo da arte. E entretanto traz qualidade de vida a quem com ela convive. Traz vida e saber, convoca e liga o que há de mais profundo existe no ser humano. E liga-o a algo que é intemporal. A arte encontra esse veio, essa matriz, que percorre os tempos e todos os seres humanos, tornando a nossa existência, a existência humana, em algo único e contínuo. A arte liga as coisas... é um liquido amniótico. Alimenta, protege e ensina. Isso é o desígnio da arte. E nessa imensa liberdade, através dos artistas, todos os presentes, o tempo-presente-de-cada-momento, de todos os tempos são convocados, tornando a experiência humana única, irrepetível e transmissível.

João Louro 5

O que é para si a arte? E o conceito de artista? Fará sentido no Século XXI falar de artistas ou são autores conceptuais, produtores de objectos e ambientes? O que o move enquanto artista? Como tudo começou para si? Sempre quis ser artista?

Responderei tão rapidamente, como se fosse um teste de reacção... ou seja, o primeiro pensamento que surge.

O que é a arte?

A arte é o símbolo da liberdade.

E o conceito de artista?

O artista é um filtro do tempo. Regista-o. É um escrivã.

Fará sentido no Século XXI falar de artistas ou são autores conceptuais, produtores de objectos e ambientes?

O artista olha para uma das faces do diamante-bruto-tempo e fala sobre o que vê, produzindo uma interpretação, descrevendo esse olhar, sob forma de obra. Quanto mais “pertinente” for esse olhar, maior será a importância dessa obra. Esse trabalho só pode ser feito pelo artista.

Qual é o papel do usufruidor e do espectador nos seus trabalhos?

O papel do espectador é imprescindível na conclusão da minha obra. Não há obra sem espectador. E só ele poderá concluir a obra que é, até à recepção, uma obra aberta.

Existe algum momento que tenha sido especialmente marcante e determinante para o seu percurso artístico?

Saber desde muito cedo que a arte era o que mais me interessava, a partir dela podia ser livre. O resto são consequências disso.

Qual das peças lhe deu mais prazer em conceber/produzir e foi um maior desafio fazer no seu percurso geral? Quer partilhar connosco algum momento especial?

The Jewell, uma obra que produzi no contexto do “Insite – Artistic practices in public domain”. Foi um convite para produzir uma obra, num contexto complexo como é a questão fronteiriça entre S. Diego e Tijuana. O projecto que propus foi aceite e desenvolvi-o através de uma fina rede de conexões complexas. Resumindo... A fronteira entre EUA e México, naquele ponto específico (Tijuana) é de extrema violência, física e psicológica. A fronteira para sair dos EUA não tem qualquer história, mas, para entrar, tudo se altera. Ali está a fronteira do mundo ocidental e isso atrai todo o tipo de desejos, crimes e desespero. Contudo, as economias interpenetram-se de forma muito clara. O fluxo desse ir e vir é constante, há uma pressão imensa naquele local. E toda a emigração, não só mexicana, mas vinda de toda a América do Sul, quer entrar no ocidente por ali. E isso é quase impossível. Nascem vilas, constroem-se muralhas, mas depois também se seduzem os americanos com todo o género de negócio que é ilegal na América. Tudo isto é uma malha muito complexa, de folia, desespero, ilegalidades, sonhos desfeitos, ilusões, etc.

O meu projecto tinha a intenção de se auto-financiar e teria que conter alguns desses elementos e acrescentar, à questão da fronteira, a mudança de estatuto do que fosse produzido ao cruzá-la. Queria também utilizar as culturas próprias de cada um dos sítios e trabalhar a alteração económica que parte da alteração de estatuto, etc. etc.

The Jewell continha tudo isso... Comprei um Jaguar Sovereign numa lixeira de automóveis na cidade de Tijuana (que serve também de caixote-do-lixo americano) por $200. Estava totalmente destruído e abandonado nessa lixeira que cobria uma paisagem a perder de vista, forrada a metal, que não era mais do que todos os automóveis acumulados, sem espaço entre eles. Era uma pele metálica que cobria a paisagem. Consegui retirá-lo e levá-lo para uma equipa de restauro de talha dourada e consegui forrar o Jaguar a folha de ouro (esta técnica é ainda vulgar no México, um país católico e profundamente religioso). Concluído esse trabalho, o Jaguar, já como obra de arte, com o seu novo estatuto, viajou para S. Diego, cruzando a fronteira sem qualquer problema.

A obra de arte foi apresentada no stand da Ferrari e da Maseratti, em La Jolla (daí o nome da obra – La Jolla, The Jewell), no bairro mais “chic” de S. Diego. Lá estava a obra no meio dos últimos modelos de Ferraris... a ganhar estatuto.

Posteriormente, essa obra foi mostrada num jantar servido por uma das famílias do “board” do projecto Inside, a família Huddenshield, onde foi proposto e decidido fazer um leilão com a obra. Acabou vendida nesse noite.

O passo seguinte foi voltar novamente para Tijuana, noutra ocasião e, com as notas de dollar da venda – e depois da autorização da directora de uma escola infantil chamada “El Principito”, – ser professor de umas aulas a crianças mexicanas, conversando sobre arte, ecologia, etc. e, no final, atribuir um conjunto de 4 notas numa folha A4, para que os alunos pudessem. depois da nossa conversa, fazer um exercício visual sobre essas notas e desenhar o que quisessem.

Mais tarde, essas notas intervencionadas foram deixadas em cafés, entregues a familiares, compraram coisas com elas, etc. E muito tempo depois, anonimamente, de forma lenta, foram aparecendo na economia real, circulando quer pela cidade de Tijuana (onde o dollar é aceite) quer por S. Diego. E, assim, as crianças que não podiam viajar para os EUA, por causa de vistos e questões burocráticas, acabavam do outro lado da fronteira através de um emissário, a nota de dollar, circulando livremente. Ainda hoje guardo algumas dessas notas.

Para além deste projecto, o que tem programado para os próximos tempos?

Os meus próximos projectos incluem, uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, em Outubro. Tenho também uma exposição individual na galeria que me representa nos EUA, Christopher Grimes Gallery, em Los Angeles, em Março. E uma exposição no Rio de Janeiro, no Museu de Arte do Rio (MAR) comissariada por Paulo Herkenhoff, o director do museu. Alguns outros projectos ainda não posso revelar.

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