DIÁRIOS DO UMBIGO

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Li há uns tempos um artigo em que se dizia que por cada língua que falamos, um novo eu se acrescenta à nossa personalidade. Tenho vivido a maior parte da minha vida em português; quis, no entanto, o destino, que chegasse aos 29 em inglês, e que completasse os afamados 30 em esloveno. Fazendo a conta simples, nos últimos anos acresci duas novas pessoas a mim!

Do meu eu esloveno pouco há a dizer, é um ser feliz e curioso mas pouco falador... pacato, digamos. Ao chegar ao trabalho dá educadamente os bons dias, nas horas de intervalo pede uma das infindáveis variedades de café, experimentando-as a todas (branco, com leite, com pouco leite, com mais leite, capuccino, expresso, longo,...). No final do dia, brinda com um copo de vinho ao anoitecer numa esplanada (esteja neve ou esteja sol) na margem do Ljubljanica. Ouvindo um espirro por perto, o meu eu esloveno reage seguro e confiante: Nazdravje! (...pouco mais...)

O meu solarengo ser inglês é, previsivelmente, mais eloquente e capaz de abordar os mais diversos temas e acções. Habituou-se a perguntar constantemente, e já de forma natural, como corre o dia a toda e qualquer alma que se lhe atravesse no caminho. Aprendeu (a custo) que quando lhe perguntam o mesmo, basta responder “good, thanks” e não despender mais que isso em busca de uma resposta genuína. Sorri e cumprimenta efusivamente desde a menina loira espampanante da recepção, ao sóbrio director que atravessa o corredor. É um ser mais relaxado, decidido e que vê um caminho claro e livre à sua frente. Não há (ainda?) demasiadas preocupações e questiúnculas a atravessar-lhe a mente a cada dia que passa. Alinha despreocupadamente na conversa de um desconhecido enquanto espera o autocarro para casa, falando de viagens de mochila pela América do Sul ou do jogo de basebol que se avizinha. Confesso que gosto desta figura, sinto-me bem na sua pele, e decidi recentemente conceder uma extensão à sua existência.

Antes disso, porém, depois destas breves incursões por estas línguas, regressei ao meu amado português mas, surpresa, fui-me deparando com lutas constantes no discurso. De manhã, chego ao instituto onde caras enfadonhas não levantam o olhar no início de um novo dia de trabalho, não dando lugar sequer à possibilidade da palavra. Acabo invariavelmente a dar os bons dias ao meu reflexo, no vidro que me separa do cubículo da entrada. O almoço ao sol na esplanada, sentindo o calor na pele e o chilrear dos pássaros no ouvido é o magnífico escape da sala cinzenta, imóvel e silenciosa onde predomina o intenso e seriíssimo trabalho de escrita e criação. Quando há diálogo, as regras são difíceis de decifrar, apesar do meu domínio e à-vontade gramatical, fonético e sintático. Tornou-se cansativo e frustrante voltar a falar português, onde me tem sido difícil solucionar os códigos.

Decidi, assim, voltar ao continente americano, e tentar retomar o fluente discurso onde o havia suspendido há tempos, nesta minha outra língua madrasta. Decidi também trocar os hospitaleiros e calorosos lusitanos, pelos sobejamente criticados fanáticos e incultos americanos. Vou deixar a sala cinzenta e silenciosa do edíficio topo de gama, e voltar ao antigo departamento cor de creme, no 5º andar, onde toda a pergunta me tem merecido resposta e dirigir um olhar não é, ainda, um esforço derradeiro

Vamos, então, dar um tempo... sim? Não desisti de ti de vez (acho), quero querer voltar. Dessa vez, terei de vir mais determinada, talvez, em dar voz aos silêncios, intrometer-me e entrosar-me na tua complexidade. Fazer parte. Reagir em vez de desistir.

A não ser que o problema não sejas tu... mas eu.

Eu Cá Tu Lá 2

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