Hoje aconteceu-me algo que poderá ser associado à ocorrência da serendipidade*. Senão vejamos. A caminho da casa de banho em passo acelerado – demonstrativo da minha aflição – num centro comercial – cujo nome não é para aqui chamado – deparo-me com um cartaz que dizia: BIFE DO VAZIO – BAIXO DE NOVILHO KG: €9,99 em vez de €13,28. Fiz uma pausa curta no meu andamento. Pensei: – Poderia não dizer mais nada. Poderia acrescentar apenas: NO COMMENTS! Mas não, quero mesmo falar deste lapsus linguae proveniente da Central de Marketing e Comunicação dessa grande superfície.
Não resistindo a partilhar o que este avistamento suscitou, começo por dizer que este cartaz projectou a criação, ou melhor a existência de uma nova secção de produtos para consumo imediato a super-preços num hipermercado qualquer. A secção chamar-se-ia: "DIET-ÉTICA EXISTENCIAL".
Seguidamente, dei por mim a debitar ininterruptamente uma lista de produtos dessa secção "DIET-ÉTICA EXISTENCIAL".
1. Bife do Vazio
2. Secretos da Inquietação
3. Pernil da Fascinação
4. Orelhas da Saudade
5. Lombo da Exaltação
6. Piano da Angústia
7. Entrecosto da Revolta
8. Picanha do Solipsismo
9. Entremeada do Agnosticismo
10. Cabeças do Pensamento ou Cabeças da Reflexão
Aos pratos principais, juntar-se-iam as entradas compostas por:
1. Pezinhos Bipolares
2. Unhas de Felicidade
3. Salteado de Emoções Contraditórias
Depois de listar estas iguarias, dei por mim a vislumbrar que esta seria a comida perfeita para enfrentar estes tempos de grande exigência estética.
De que mais precisamos senão de uma dieta existencial, com nutrientes existenciais proteicos que nos façam redimir?
Já me estou a ver a pedir um prego do vazio em bolo do caco para me fazer superar o torpor.
Estas novas propriedades dos alimentos reenviaram-me para um mapa imaginado por dois autores holandeses: Louise van Swaaij e Jean Klare, que procuraram fazê-lo a partir de topografia emocional. Esta dupla, elaborou uma cartografia da experiência humana, que resultou em The Atlas of the World of Experience. Em vez de termos nomes de terras, sítios, rios a que estamos mais ou menos habituados a reconhecer, somos guiados por territórios nomeados a partir dos comportamentos (aldeia da Impaciência, Arquipélago das Ilhas Esquecidas), sensações (cidades da Alegria e da Liberdade), emoções (Rio do Amor), gestos (aldeia do Beijo), etc. Um mapa que plasma a aparelhagem humana na sua ligação aos lugares, às suas paisagens e às experiências que deles resultam, por mais veloz ou regular que seja a nossa passagem.
Voltando à alavanca deste texto, vou acrescentar isto para fechar esta crónica. Na aula que dei esta manhã e estando a ler um texto de uma aluna sou ouvinte do seguinte por parte da colega que estava na mesa ao lado: – A minha prima gosta da “Dieta dos 31 dias por Ágata Roquette”; do “Pano e Tinta”, da “Mercearia do Preto” e de “Amor com Farinha e Bolos Decorados” e a minha prima gosta de “Quintas de Casamentos”, dos “Buraka Som Sistema”, dos “Fofos de Belas”, da “Swiss International AirLines” e dos “Sabores de Mercado do Peixe”.
Tudo isto me faz pensar que se comer um Bife do Vazio ou a Picanha do Solipsismo, talvez fique a olhar para o céu à espera que chegue uma música soturna.
A – Qual?
B – Que importa?
A – Diz lá!
B – Olha pode ser do Erik Satie ou do Keith Jarrett ou do Bill Evans, mas também pode ser dos Tuxedomoon!
A – Foda-se! Qual?
B – “In a Manner of Speaking”
A – Estoi cheio de fome!
–
*Serendipidade, também conhecido como Serendipismo, Serendiptismo ou ainda Serendipitia, é um anglicismo que se refere às descobertas afortunadas feitas, aparentemente, por acaso.