Manuel Bogalheiro estudou guitarra clássica no Conservatório até aos 17 anos, altura em que descobriu o computador como meio ilimitado de criação, sem ser necessário treinar 7 horas por dia. A primeira música que fez foi baseada numa remistura dos Portishead. Pegou na parte final, a sua favorita, e fez um loop de 10 minutos. Do prazer egoísta de seleccionar e apenas ouvir o que mais gostava, passou para a exploração do downtempo e dos loops invertidos.
A música ficou em segundo plano quando se começou a interessar pela filosofia, mas não foi esquecida. Alguns anos mais tarde, essa formação em Humanidades é uma das principais fontes de inspiração para o que produz.
Das sombras dos filmes noir e das entrelinhas dos livros, nasce Mr. Herbert Quain. O nome foi “roubado” a uma personagem de José Luís Borges. Quain é um escritor ficcional que aparece num conto do argentino, An Examination of the Work of Herbert Quain, no qual é feito um ensaio sobre as suas (supostas) obras. Manuel Bogalheiro sempre achou que seria o nome perfeito para o seu projecto musical, porque “quem usa a música dos outros, faz samplagem e mistura tudo, também acaba por ser alguém que não existe. É como se o tempo ficasse encarregue de juntar essas coisas”.
O tempo é um dos elemento centrais da produção de Mr. Herbert Quain – os loops que se movem em espiral e se transfiguram ao longo de uma música, tal como os acontecimentos se sucedem no tempo e constroem memórias. Aqui (e na vida também) as memórias são feitas de imagens, excertos de livros e samples de músicas. São referências que nos ajudam a navegar pela história que nos quer contar, mas não são, de forma alguma, uma condicionante à narrativa. Essa é construída por quem ouve.
Recusa conceitos lineares (narrativos ou outros) incluindo a ideia de que a repetição – outro dos elementos centrais do seu trabalho – seja redundante. “Uma coisa que é repetida nunca é igual à primeira vez, quanto mais não seja pela ordem no tempo em que ela está. E, sem querer intelectualizar muito, admito que gosto dessa ideia do tempo de uma forma misturada, passado, presente e futuro. A ideia de haver quase um anacronismo permanente”, diz. Em termos práticos, isto traduz-se muitas vezes no reverse, uma técnica de estúdio que lhe permite colocar sons do fim para o princípio, baralhando ordens cronológicas.
A memória
O 1º EP, lançado há cerca de dois anos, Incursions in the Portuguese Mood, é uma espécie de arqueologia do ser português, condensada no “rework” de duas músicas, ambas cantadas a dada altura por Simone de Oliveira e Madalena Iglésias: Degrau em Degrau e Pingos de Chuva. Há também um excerto de um poema de Ruy Belo (A Mão no Arado) e outros fragmentos de saudade e melancolia que não passam pelo óbvio Portugal do fado. Tudo colado pela batida (lenta) da música electrónica. “A ideia é um estrangeiro que chega e interpreta o espírito português. Consegue perceber muito facilmente uma série de coisas mas, na verdade, nunca as consegue sentir, porque não é português. Dai a incursion, que nunca será concretizada. Será sempre de um ponto de vista de fora. E é esse lado de fora que introduz o lado electrónico”, explica.
Foram estes dois primeiros temas que começaram a passar na Rádio Oxigénio, pela mão de Rui Portulez. A ideia de que a sua música podia chegar até quem admirava pelo filtro musical, deu-lhe a ambição de tentar fazer deste projecto algo mais sério. Contrariando a ideia de que a rádio está a morrer, reconhece a importância da mesma na divulgação da sua música. A par com a Oxigénio, veio a Antena 3. Rui Estêvão, Rui Vargas e Henrique Amaro (através do qual surgiu também o convite para integrar os novos talentos da FNAC, este ano) são alguns dos nomes que refere como fundamentais nesse processo.
É também mais ou menos nessa altura que entra em contacto com a ZigurArtists, uma pequena editora de Lamego. Aqui, encontra uma casa e a liberdade para fazer o primeiro álbum sem interferências comerciais. Fruto deste casamento, há cerca de um ano, nasceu How I Learned to Stop Worrying and Start Loving the Waiting. São onze faixas que variam entre os 30 segundos e os 5 minutos. A temática do EP, o sentir português, deu lugar a uma outra vertente do trabalho de Herbert Quain. “De uma forma ou outra, a minha música amadureceu e a direcção é cada vez mais depender menos desse tipo de âncoras, como ter uma voz ao longo da música toda. A ideia do sampling e da referencia e do tributo está lá e é uma parte importante do processo, mas quero que a música consiga viver mais apenas do que eu crio”, diz.
É também na ZigurArtists que encontra João Pedro Fonseca (membro da editora) que irá completar o ciclo de inspiração. A música de Herbert Quain nasce de imagens e dá origem a outras, num processo circular. O trabalho com João Pedro Fonseca, encarregue do video jaming das performances ao vivo e também do que é feito à posteriori, a nível visual, é tão essencial para Herbert Quain como a repetição e o tempo. “O João Pedro Fonseca faz a ilustração das músicas. Vai procurar os filmes onde eu vou buscar os diálogos, o imaginário noir, o preto e branco”, explica.
The future starts slow
Até ao final do ano, está previsto sair um novo EP. Quatro ou cinco temas que embora sejam faixas isoladas, podem funcionar como uma peça musical de 30 minutos.
Há, num futuro mais ou menos longínquo, a ambição de editar algo em formato físico, de preferência em vinil. Desejo de coleccionador e de quem usa o digital para dar ao som a textura da agulha.
Até lá, fica a modéstia de que “isto ainda é tudo a uma escala muito pequena” e o prazer de actuar para o público. Diz que cresce em cada live que faz e que reforça a convicção de que há espaço para tocar e dançar música electrónica lenta depois das duas da manhã. Gostava de actuar num espaço em que o público estivesse sentado, por exemplo.
Enquanto esse espaço não se torna real, fez um live streaming para a Antena 3, actuou no Santiago Alquimista e nos corredores da RUC (Rádio Universidade de Coimbra) entre outras aparições no meio das sombras. Ainda assim, Mr. Herbert Quain é um segredo (mais ou menos) bem guardado. Ainda o podemos ouvir como quem abre um baú cheio de memórias, com o pó a brilhar em contra-luz. Catch him while you can.