Na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva pode ser observada uma exposição Aparências Privadas sobre a temática dos Auto-Retratos de Artistas Contemporâneos nacionais e estrangeiros de diferentes gerações. É uma mostra organizada em torno de uma parceria entre as peças de arte de duas colecções, o acervo da FASVS e o da Colecção de (Safira e Luís) Serpa, comissariada por este último. À partida constata-se duas realidades diferentes quanto aos trabalhos apresentados, os que estão integrados na Fundação são obras datadas da 1ª metade do Séc. XX pertencentes a artistas com percursos consistentes como Vieira da Silva, Arpad Szenes e Hogan, que resultam de uma leitura coerente, na historiografia de arte contemporânea. Enquanto os da colecção de Serpa datam da 2ª metade do Séc. XX e XXI numa vertente mais contemporânea, onde a temática do auto-retrato está direccionada para os caminhos da pesquisa experimental. Existe um diálogo entre dois discursos diferenciados que correspondem a períodos diferentes, um mais histórico e virado para a modernidade e outro mais actual, seguindo o caminho do vanguardismo. O duplo olhar é acompanhado plasticamente pelos processos técnicos, dos suportes convencionais à utilização de técnicas de experimentação. Os trabalhos foram distribuídos em torno de cinco temas: a transfiguração; o olhar; o estúdio; a morte e o espelho do artista.
Arpad Szenes, Enaltecer a memória de si mesmo [L. Serpa]
No sentido de despertar a atenção para o que vamos encontrar está postada a frase de Baudelaire: «Eu sou todos. Todos sou eu». De entre as cinco temáticas três delas: (o olhar, o estúdio e o espelho do artista) já foram estudadas por um vasto número de artistas fazendo parte da história de arte, onde a condição narcísica se evidencia num pleno auto-reconhecimento. A obra passa a ser o seu reflexo como reconhecimento do «eu» e o espaço onde se confronta consigo mesmo. Ele é a temática da própria obra passando a ser o centro do universo. Auto-retrata-se, na tentativa de uma interrogação sobre ele e de procura da sua identidade, que se prende com a sua afirmação. Observa-se a importância do espelho para a construção do auto-retrato onde realça a perspetiva do artista face à observação, interpondo a realidade e o imaginário. O espelho provoca a tomada de consciência de «si», perante a sua imagem refletida, permitindo o reconhecimento do «outro» como cúmplice. Existe um conjunto de peças curiosas na sala dedicada ao espelho, que são esculturas de parede em mármore de Pistoletto que têm a configuração oval de um espelho e/ou de um retrato. Grande parte dos artistas tem um núcleo significativo de auto-retratos e o seu olhar foi para muitos criadores, desenvolvido de uma forma obsessiva. Este género de trabalhos está inserido numa figuração bem definida em que os olhos dos retratados por eles assumem um lugar de relevo como o desenho de Cabrita Reis (que se tornou a imagem da mostra) onde a cumplicidade com o olhar do visitante assume uma intencionalidade muito própria, atingindo um momento de exceção numa expressividade singular. O estúdio do artista funcionou como um espaço de inspiração, pouco acessível aos visitantes, criando por isso um lugar pertencendo ao mundo exclusivamente dele. Ao longo do tempo essa imagem foi desaparecendo onde esses locais acabaram no período atual por serem des-sacralizados até porque a imagem do inspirador passou a desempenhar um lugar diferente. Esse espaço interior perdeu significado podendo até ser a rua por excelência o material de investigação do criador. O papel do artista também mudou de funções, tendo havido uma transformação da própria imagem do artista. O Portrait de famille ou L’atelier, le couple de Vieira da Silva, foi um trabalho bem escolhido porque sintetiza as três temáticas (olhar, estúdio e espelho).
Vieira da Silva, Portrait de famille ou L’atelier, le couple
O óleo envolve o olhar da pintora bem como a introdução do espelho, como se ela estivesse posicionada em frente a ele no lugar do público, e por sua vez refletisse o interior do atelier com Arpad a pintar, e no plano do fundo uma tela inacabada, numa relação de uma pintura dentro da pintura. Os dois temas (transfiguração e morte) aproximam-se das problemáticas dos discursos do mundo contemporâneo. Nestas abordagens, o artista pode já não se encontrar em plena forma onde é realçado o aspeto menos «positivo» do criador, do envelhecimento, da decadência e da destruição do corpo solitário e morte física dando lugar a composições de gestos performativos. O que lhes interessa é criar obras que ficarão para futuro demonstrando a sua imortalidade e a eternidade da obra para contrariar a sua condição de existência efémera. É revelador a fotografia Double Self-Portait de Coplans.