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A escassas semanas de chegar aos cinemas mais uma adaptação “clássica” de Grandes Esperanças (aka vestidos de época e cabeleiras sob a batuta de Mike Newell) pareceu-me uma boa altura para recordar outra, menos convencional.

Realizado em 1998 por Alfonso Cuarón, este filme é uma versão moderna do livro de Charles Dickens. Trocam-se os saiotes por um guarda-roupa de inspiração Donna Karan, mudam-se os nomes das personagens e o contexto (no século XX já não havia lugar para cavalheiros, portanto a personagem principal transforma-se em pintor) mas mantém-se a essência do enredo.

“Não vou contar a história como ela aconteceu. Vou contá-la da forma como me lembro dela”. É assim que começa o filme, narrado na primeira pessoa por Finnegan Bell (Ethan Hawke).

Vamos encontrá-lo com sete anos, no Verão em que tudo o que é importante acontece. Daqui para a frente, a vida será um espelho ou uma consequência destes meses. É o Verão em que conhece Estella e Nora Dinsmoor (Gwyneth Paltrow e a divina Anne Bancroft, respectivamente) a rapariga sem coração e a mulher com o coração partido. É o Verão em que o mundo se torna maior através de um encontro imediato de terceiro grau com um prisioneiro em fuga (um Robert De Niro algo canastrão e desnecessário).

Para um filme baseado num livro, as palavras têm aqui pouca importância. Portanto, eu que acredito piamente que o cinema também é um arte de palavras (voltaremos a este tema um dia destes) apresento-vos hoje um exemplo inverso. Começando na escolha da Costa do Golfo, na Flórida, como cenário principal, passando pela direcção de fotografia de Emmanuel Lubezki e acabando no trabalho de Francesco Clemente (que é usado como sendo de Finn) Grandes Esperanças define-se nos contornos impressionistas da imagem. Não é um filme de grandes citações. É um filme que vive calado dentro de quem reconhece o deslizar do lápis no papel e os gestos largos que movem o pincel sobre a tela.

Enquanto criança e adolescente que sempre desenhou, o meu fascínio pelo trabalho de Francesco Clemente foi imediato. Um mundo de grafite, lápis de cor, pastéis de óleo e aguadas, que se traduz em retratos naïve nos quais os olhos são enormes e expressivos espelhos para a alma.

Se a obra de Clemente se move normalmente no terreno da metamorfose, em Grandes Esperanças é o grilo falante que nos recorda que dentro de Finn está sempre o mesmo menino de sete anos que conhecemos no início e que até numa Nova York chuvosa, há espaço para os Verões no Golfo. É o batimento cardíaco do filme, que ecoa onde as palavras não chegam.

Grandes Esperanças 1

Grandes Esperanças 2

Aliás, os objectos inanimados e os locais são personagens por si só em Grandes Esperanças. Possivelmente, até mais importantes para a história do que as de carne e osso. A Costa do Golfo representa a infância, desfocada pela magia do calor; Nova Iorque é a idade adulta, com chuva e lofts de metal; Paradiso Perduto, a casa de Nora, é o início e o fim de tudo. Aqui nascem amores, são criadas revoltas e vivem-se fantasias. É um monumento decadente a um romance perdido, no qual a folha de ouro do tecto se mistura com os ramos das trepadeiras. É um local morto-vivo, como Nora. “Sabes o que é isto? É o meu coração. Está partido. Consegues senti-lo?”.

Grandes Esperanças 3

Tal como disse no início, as palavras têm aqui pouca relevância. Mas ainda assim, há umas quantas que conseguem escapar por entre as imagens. “Por muito que maltrate e abuse do meu dom, ele não me abandona. É o meu dom. Tão imerecido como o amor”, diz Finn a dada altura. E pelo meio, as palavras dos Pulp dão às personagens uma aura que os actores, na realidade, não têm (sorry Gwyneth, podes ter sido considerada a mulher mais bonita do mundo, mas para mim continuas a ser um pãozinho sem sal).

“You are the last drink I never should have drunk / You are the body hidden in the trunk / You are the habit I can't seem to kick (...) Like a car crash I can see but I just can't avoid /Like a plane I've been told I never should board /Like a film that's so bad but I've got to stay till the end / Let me tell you now: it's lucky for you that we're friends”

Grandes Esperanças também pode ser visto como uma história sobre ambição. Sobre a avidez de querer fugir, a todo o custo, de uma realidade que nos prende. Tenho para mim que a ambição é uma mutação genética da evolução. Não existia na origem. O que nos move são as coisas mais básicas, definidas bem lá atrás, num qualquer paraíso perdido onde parecemos existir eternamente, por muito que se viva a seguir.

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