DIÁRIOS DO UMBIGO

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Sou muitas vezes confrontado com a proliferação da publicidade exacerbada que se faz dos roteiros gastronómicos e dos restaurantes de luxo em Portugal e especialmente em Lisboa. Aparentemente, já não se vai ver um espectáculo ou uma exposição: vai-se comer. Já não se fala de um livro que fascina ou incomoda, fala-se de cozinha molecular. É esta a sensação que se tem na comunicação social. A cozinha é a nova arte, a cultura que impera quando todas as formas artísticas (as verdadeiras) estão a ser abafadas até ao seu falecimento. Ora isto serve muito bem um sistema ideológico em que se pretende que o povo não pense. Antes que coma e cale. Veda-se a comunicação sobre arte e impede-se o público de saber o que ainda se vai fazendo. Reina a comida e um bife tem maior probabilidade de ser capa de revista do que um actor. Uma tentativa desesperada de fuga? Uma crescente futilidade? Afinal, meus amigos, um restaurante de luxo é isso mesmo. Um luxo. A cultura é uma necessidade. Porque é que o luxo é celebrado e a cultura é espezinhada? Pode ser a classe económica superior, geralmente acéfala no que diz respeito à arte, a fazer vingar os seus hábitos de consumo...

Posta esta questão que não quero prolongar, apenas fica aqui uma teoria sobre o elitismo e a futilidade, comparando os vários ramos da cultura (integrando a culinária como parte dela, a contragosto). Para pensar!

1- Ao contrário de algumas teorias longe da realidade, a arte contemporânea não é para toda a gente. É necessário por um lado, a sensibilidade para a fruir e por outro o conhecimento e a formação para a entender. No entanto, esta é acessível a todos, pelo menos no que diz respeito às artes visuais. As galerias são gratuitas, os museus são baratos e têm dias gratuitos.

2- O teatro e a dança são um ramo da arte mais facilmente compreensível, mesmo por quem não é conhecedor, mas o preço da sua fruição faz das artes performativas um reduto elitista. Sendo uma área mais democrática na sua relação com o público, ela é mas elitista no que diz respeito ao preço pago pelo acesso à mesma.

3- No extremo oposto está aquilo a que hoje em dia substitui a arte e a cultura: a gastronomia. A comunicação social hoje em dia substituiu os teatros, as galerias e os museus pelos restaurantes. Por todo o lado só se lê e ouve falar de comida. Os chefes passam a ser estrelas mediáticas e venerados como deuses. Equiparados a pintores, actores, escritores e figuras máximas da cultura, os cozinheiros tornaram-se a nossa cultura. Uma cultura que se recusa a pensar. Coisa excelente para um povo iletrado e ignorante como o português. Na verdade, a culinária não produz pensamento. Qualquer pessoa com um Q.I. acima de zero pode usufruir das propostas mais sofisticadas dos melhores chefs do mundo. A questão está em que esta realidade “cultural” (porque embora seja acéfala, é aquela a que menos pessoas têm acesso. Ora, se visitar uma galeria é grátis e ver uma peça de teatro custa dez euros, apreciar uma refeição de autor implica um gasto médio de 40 euros.

Significa isto que a arte é a cultura dos pobres e a culinária é a cultura dos ricos?

*As opiniões exprimidas pelos nossos cronistas são pessoais e não reflectem necessariamente as posições da Revista Umbigo.

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