O Exercício Experimental da Liberdade.
23 de Março de 1959. O suplemento dominical do Jornal do Brasil publica nas suas páginas o Manifesto Neoconcreto. Este foi assinado pelo director do suplemento, Reinaldo Jardim e por Ferreira Gullar, Theon Spanudis, Amílcar de Castro, Franz Weismann, Lígia Clark e Lígia Pape.
Hélio Oiticica
Em 1959 o vinil de Kind of Blues de Miles Davis começa a girar sob as agulhas, a Nouvelle Vague de Truffaut, Resnais e companhia explodia a preto e branco nos cinemas, Naked Lunch de William Burroughs para os anglosaxónicos e Las Armas Secretas de Júlio Cortazar para os latino americanos baralham a cabeça dos leitores. A arte pop, a op arte, o novo realismo ou o happening começavam a esboçar a década seguinte porque uma nova década começa sempre no final da antecedente. E nada existe sem influência de um todo. E tudo era tão moderno. E o Brasil também era tão moderno.
Comecemos por uma redundância, comecemos pelo princípio, comecemos pelo neologismo. Pelo neo. Se é neo é porque vem de algo antes, é derivado de. E esse neo, ao estar agarrado a outra palavra ganha novo significado. É como a querer libertar-se mas não esquecendo a origem. E a origem é sempre a palavra que vem depois do neo. Neste caso; concretismo. O concretismo terá influência das primeiras décadas do século XX através das teorias e práticas dos construtivistas russos, Maiakovsky no meio, e do grupo holandês De Stijl onde constava Mondrian. Bem mais tarde em 1951, a década que adoptaria oficialmente essa designação, na Bienal de São Paulo, teve repercussão internacional. Entre os artistas estrangeiros de vanguarda estava o suíço Max Bill que seria premiado pela sua escultura chamada Unidade Tripartida. Max Bill iria influenciar alguns artistas brasileiros e logo em 1952 surge em São Paulo o Grupo Ruptura liderado por Waldemar Cordeiro e mais tarde, em 1954, no Rio de Janeiro, o Grupo Frente cujos ideólogos seriam o poeta Ferreira Gullar e Ivan Serpa.
Lygia Clark
Seriam os também poetas, mas paulistas, Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos que naquele ano do arranque, 1952, fundariam a revista Noigandres. O concretismo era basicamente um abstraccionismo da escola geométrica que procurou a sua expressão na poesia, na música e nas artes plásticas, por vezes fundindo-as. Fugia do figurativo, era uma ausência de identificação, procurava a forma pura ao invés do conteúdo lírico. Por vezes no seu extremo roçava o matemático. A poesia não tinha verso e por vezes nem palavra, as pinturas planos e linhas, grafismo, repetição. Arquitectura pura. O reflexo da crescente sociedade industrial, uma espécie de modernismo sem homem. Em 1956 o então director do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Mário Pedrosa, também importante crítico, apoiaria, como sempre apoiou as vanguardas, a Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta onde participaram paulistas e cariocas entre outros. Não obtendo o sucesso esperado foi para o Rio de Janeiro em 1957 onde foi bem recebida pela imprensa e intelectuais, em especial no importante Jornal do Brasil cujo suplemento cultural era desenhado graficamente pelo ainda concretista Amílcar de Castro do Grupo Frente. Mas o idílio durou pouco. Aos poucos, certas diferenças filosóficas e estéticas apoderavam-se do grupo dos cariocas (naturais ou habitantes do Rio de Janeiro) e o concreto iria rachar.
Lygia Pape
E o Brasil também era tão moderno. Poucos no resto do mundo sabiam ou queriam saber, mas, à sua maneira, o Brasil, país continente, acordava para o futuro. E o futuro era optimista. Entre 1956, ano da posse do presidente eleito Juscelino Kubischek e 1964, ano do golpe ditatorial militar o país viveu um optimismo nunca antes visto. O lema do presidente sobre a modernização do Brasil era “cinquenta anos em cinco”. O auge seria a inauguração da única cidade construída de raiz para ser capital, Brasília, em 21 de Abril de 1960. Cidade arrojada concebida por Lúcio Costa com colaboração importante de Óscar Niemeyer. Ambos tinham recebido influência do arquitecto e urbanista modernista suíço Le Corbusier que tinha feito visitas ao Brasil desde o final da década de vinte. O suíço era fascinado com o Brasil e os arquitectos brasileiros com o suíço, isso daria frutos na criação e desenvolvimento de um modernismo brasileiro, uma arquitectura modernista tropical. A representá-la está a Casa das Canoas, desenhada por Niemeyer em 1953. Mas nem só de arquitectura viveu essa época e a a exposição que ocorreu na cidade de Londres em 2001: Century City; Art and Culture in the Modern Metropolis demonstrou-o. Para esta foram escolhidas nove cidades representativas de nove épocas do século XX, como por exemplo Moscovo para o período de 1916 a 1930 ou Nova Iorque de 1969 a 1974. Para o período entre 1950 e 1964 a cidade escolhida foi o Rio de Janeiro. Já antes de Juscelino Kubiscthek a cidade fermentava o modernismo brasileiro. E esse fermento ao crescer iria dar origem, além da arquitectura, ao novo e sofisticado género musical conhecido por Bossa Nova, desenvolvida nos bairros de Copacabana e Ipanema por nomes como João Gilberto, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, entre outros, mas seriam esses três os nomes escritos no primeiro disco de Bossa Nova, Chega de Saudade. Em 1959 dão-se os primeiros concertos da então ainda meio desconhecida Bossa, uma música na altura considerada demasiado “moderninha”, algo estranho entre a música brasileira e o jazz americano. O cinema também se libertaria seguindo o exemplo dos franceses e dos italianos da época e tornar-se-ia igualmente novo. Cinema Novo. O filme considerado inaugurador do movimento seria Rio, 40 Graus de Nelson Pereira dos Santos em 1955. O Rio mostrado nu e cru tal como no neorealismo italiano. Mas o grande filme a nível internacional seria Deus e o Diabo na Terra do Sol de 1964 do baiano Glauber Rocha que seria indicado para a Palma de Ouro de Cannes. A temática brasileiríssima e estética moderníssima. O quartel-general dos cineastas, teóricos e técnicos desse grupo seria o Bar da Líder no bairro de Botafogo. Era uma cidade em ebulição criativa, de intelectuais boémios, de cultura popular a misturar-se com a erudita. Era a cidade do Carnaval que fez ainda mais Carnaval e o povo optimista quando a seleção brasileira foi disputar a Copa do Mundo à Suécia em 1958 e regressaria pela primeira vez campeã do mundo. É que a selecção levava com ela entre outros atletas-génios Pelé, do Santos e Garrincha, do Botafogo. Era o Brasil a devorar as outras culturas e a crescer.
Hélio Oiticica
E o concreto iria rachar logo após a Exposição Nacional de Arte Concreta de 1957 pois os cariocas do Grupo Frente estavam14 insatisfeitos com o rumo que o movimento levava e queriam algo mais, algo mais vivo, mais perto do Homem, com algum sentimento e não tão mecanizado como estava a ser a arte. Waldemar Cordeiro e restantes paulistas do Grupo Ruptura não concordaram e assumiram-se como os legítimos representantes do concretismo. Surge então em cena o tal neologismo; neo, de neoconcretismo. E ficaria a fermentar alguns meses. Com Reinaldo Jardim a dirigir e Amílcar de Castro na parte gráfica, e assinado por mais cinco “dissidentes”, o Manifesto Neoconcreto editado no suplemento de Domingo do Jornal do Brasil em 1959 é o início oficial do movimento que na essência não excluía totalmente o passado mas procurava aberturas e que mais do que um grupo ortodoxo e radical era um conjunto de artistas que desejava exprimir-se livremente e se possível libertar a arte, no espaço e no tempo, e até mesmo nas mãos das pessoas. Um dia antes de o Manifesto sair no jornal é inaugurada a Primeira Exposição de Arte Neoconcreta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Mais duas exposições seriam realizadas, uma no Ministério da Educação do Rio e outra no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Nestas alguns elementos ligados aos concretistas mas que se tinham passado para os cariocas foram convidados a expor, o mesmo com alguns concretistas, provando não haver ressentimento da parte do grupo carioca, embora o mesmo não se passava do outro lado. Podia-se tentar explicar essas diferenças estéticas e espirituais através da personalidade típica dos nativos; os paulistas mais europeus, mais racionais, os cariocas mais litoral tropical, mais alegres. O paulista é seco, o carioca é sunga (tanga de praia). No entanto fora do Rio nunca obteve muito reconhecimento. Diz-se que o apogeu do neoconcretismo foi de 1959 a 1962, apenas três anos. Talvez sim, ou não, pois artistas que se juntaram ao grupo inicial como por exemplo Hélio Oiticica, iriam continuar e mesmo fazer crescer a sua reputação, embora sempre meio fora do sistema oficial. Hélio chegaria a expor em Londres na Whitechapel Gallery em 1969 a convite de um seu admirador e crítico de arte, o inglês Guy Brett. Quem também desenvolveria o propósito do neoconcretismo de maneira muito firme seriam as duas Lygias; Clark e Pape.
Lygia Clark
Clark chegaria mesmo a desenvolver trabalhos de psicoterapia de grupo. Também desenvolveria os Bichos, termo muito brasileiro para animal, em que as suas peças poderiam e deveriam ser manipuladas pelas pessoas, pese embora a sua inibição natural ou imposta pelos museus. Franz Weissamann, sobre as suas esculturas que pareciam não ter começo ou fim, pedia às pessoas que lhes mexessem. O neoconcretismo não se ficaria pelas artes plásticas (pintura e escultura) mas trabalharia também a poesia, o ballet, e textos teóricos. Ferreira Gullar, o escritor do Manifesto, seria autor de textos teóricos e críticos do movimento e arte em geral além de poemas neoconcretos. Estes no entanto não teriam grande produção ao contrário dos poemas concretos dos paulistas. Ambos eram no entanto poemas que destruíam a sintaxe, o verso, e seriam poemas visuais de leituras múltiplas.
Ferreira Gullar, apesar da sua importância para o movimento, foi dos primeiros a mudar de estratégia ao ligar-se à arte mais politizada que começava a aparecer em meados da década de sessenta. O neoconcretismo não era politizado, era mais subtil. Já o crítico e marxista Mário Pedrosa tinha escrito que a arte por si mesma já é um veículo de subversão.
Lygia Pape
Era o Brasil a devorar as outras culturas e a crescer que em 1967 iria baptizar de Tropicalismo um novo movimento musical que surgia no Brasil. O nome era inspirado na instalação Tropicália de Oiticica tal como um estandarte usado num palco de um concerto com a frase “Seja marginal, seja herói”. Os tropicalistas eram Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, que queriam viver o seu tempo mas ao mesmo tempo conscientes das aulas dos modernistas brasileiros das primeiras décadas do século XX e do seu Manifesto Antropofágico que afirmava que uma nação nova como o Brasil tinha que absorver as outras culturas para criar a sua própria. É um comboio brasileiro, um trem, que segue com três carruagens; Modernismo-Concretismo/Neoconcretismo-Tropicalismo. A última estação, é hoje, o tempo útil contemporâneo.
A arte por si mesma já é um veículo de subversão, mas no Brasil é veículo de esquecimento. O pouco valor que o brasileiro médio dá à sua produção artística é uma infeliz e óbvia herança portuguesa. Os orgulhos patrióticos são desviados para outros campos, de futebol por exemplo. Nada de errado, não fossem os próprios neoconcretistas a aproximar a arte da cultura popular, o erro é da parte estatal.
Num artigo sobre Hélio Oiticica que saiu na revista da Gulbenkian Colóquio Artes de 1973, Aracy A. Amaral já escrevia sobre o pouco preservado trabalho do artista por parte do Brasil. No ano de 2009 fez cinquenta anos do Manifesto Neoconcretista e o Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro faz uma exposição comemorativa chamada Marginais-Heróis. Também no Museu de Arte Contemporânea de Niteroi houve uma exposição. Por contraste e ironia, no final de 2009 dá-se um incêndio num armazém onde estava depositada grande parte do trabalho de Hélio Oiticica que não está em museus ou colecções. Mais de metade das obras arderam ou ficaram danificadas. O armazém era do irmão de Hélio e não pertença do Estado ou do governo do Rio onde estariam melhor protegidas.
Que não arda este artigo, porque está consciente (porque os artigos têm consciência) do seu contributo para a divulgação do neoconcretismo.