É já um cliché falar do paradoxo que é a solidão dos jovens, imersos que estão num mundo ligado em rede e permentemente em conexão com toda uma multidão que se expressa em likes, hashtags e smiles. Toda uma comunicação permanente e automática que, apesar de tudo, apenas reforça um lado individualista e narcisista de cada um. Afinal, aquilo que nos aproxima, centra-nos dentro de nós próprios, ao querermos tão ardentemente projectar no mundo uma imagem própria, muitas vezes também fictícia. Se essa projecção serve para construir uma personagem que atraia as atenções, ela fecha-nos também os olhos aos outros que tentam fazer o mesmo. Estaremos todos nós a encenar um filme sem narrativa? O fotógrafo Gonzalo Bénard interessou-se por aquilo a que chama os “screenagers”, uma geração que cresceu agarrada a um ecrã (screen), seja de televisão, de computador, telemóvel ou tablet. É esta a principal forma de estes jovens se relacionarem com o mundo, através de um ecrã que lhes filtra o mundo e transmite uma imagem também ela construída. Uma realidade feita de distâncias e residente entre o voyeurismo e o exibicionismo. No fundo, a comunicação pode ter sido aumentada e acelerada, mas nem por isso nos sentiremos mais acompanhados. E se falha a Internet?
Já o filósofo Gilles Lipovetsky falava nestes jovens angustiados que “têm medo de não encontrar um lugar no universo do trabalho” e vivem o presente como se não houvesse futuro. Gonzalo Bénard pegou nesta ideia e desafiou um conjunto de jovens dos 18 aos 28 anos, provenientes de várias cidades diferentes no mundo para participarem no seu projecto B Shot by a Stranger. Através das redes sociais, o artista recolheu voluntários que aceitaram entrar neste trabalho filosófico-fotográfico sobre a solidão e a ansiedade na juventude. Estes participantes seriam fotografados na intimidade das suas casas, dos seus quartos, mas sem a presença física de Bénard. As fotografias foram todas realizadas por webcams instaladas nas suas habitações. Desta forma concretizou-se o processo habitual de distanciação entre intervenientes. As razões pelas quais os voluntários entraram neste projecto? “Alguns, como um grito de atenção, alguns outros por um momento de exibicionismo - o que é por si só uma chamada de atenção -, e alguns outros ainda apenas compartilharam a sua intimidade e momentos privados para a proposta do projecto, tanto como um estudo de caso como em nome do envolvimento artístico”, explica o fotógrafo. É assim que se concretiza um dos trabalhos de Gonzalo Bénard com maior repercussão no meio artístico, sociológico e académico. “A câmara sempre foi uma ferramenta de voyeurismo”, diz “Eu não tinha percebido isso antes. Até que eu comecei o B Shot By a Stranger... e estiquei as fronteiras. A fotografia de rua pode ser tão voyeurista como fotografar um modelo a posar. Um fotógrafo de guerra que captura momentos de dor e sofrimento usa a câmara como ferramenta voyeurista também. Mas nada disso pode ir tão longe quanto ver alguém em seus momentos vulneráveis, íntimos, nus, solitários, privados. A maioria dos voluntários são jovens com uma vida social, as pessoas com vida, pessoas normais com emoções e sentimentos, mesmo se eles têm máscaras para esconder as suas emoções e sentimentos em relação à sociedade (não temos todos?). No entanto, quando voltarem para casa, sozinhos, eles sentem a sua própria solidão, alguns vazios, alguns 'enfrentando-se nos sentimentos'. Estudantes universitários ou trabalhadores, a maioria deles experimentam seus primeiros anos em que vivem sozinhos ou compartilham apartamentos longe de suas famílias. Experimentando suas primeiras crises graves. Eles são jovens e experimentam os primeiros passos da idade adulta. Como lidar com novas emoções, ou como enfrentá-los, construindo defesas e rituais para ajudá-los a lutar e crescer”.
O projecto B Shot By a Stranger está em permanente desenvolvimento e foi apenas um pretexto para iniciarmos aqui e de forma não cronológica uma apresentação do percurso de Gonzalo Bénard como fotógrafo, com uma exposição patente neste momento no Centro Cultural de Cascais intitulada Os Seres Imaginários. Gonzalo Bénard é um artista nómada que tem vivido entre Lisboa, Barcelona e Paris, sendo um fotógrafo aclamado com peças na colecção de, imagine-se, Elton John. O seu percurso é influenciado pelas suas viagens dentro de si e pelo mundo, como o caso da temporada que passou no Tibete. As suas experiências e contacto directo com os xâmanes também servem de ensinamento para as imagens que cria e para a forma como pensa. Gonzalo é um solitário convicto e o seu interior é suficientemente rico para alimentar a sua arte, mas neste caso, a exposição Os Seres Imaginários vai buscar as referências ao Livro dos Seres Imaginários de Jorge Luís Borges, escrito em 1969 e que contém uma descrição de 116 monstros que povoaram as mitologias e as religiões. Gonzalo Bénard parte destas descrições e constrói os seus próprios animais, uns mais outros menos fiéis às ideias do escritor. Para além da série de fotografias Animais, inspirada em Jorge Luis Borges, duas outras estão articuladas nesta exposição: Híbridos e Totem. Cada animal que aparece nas fotografias de Gonzalo Bénard representa uma espécie de aptidão, poder ou força que o ser humano procura ter. A fusão entre homem e animal quer assim dotar o humano de novas forças que esses animais simbolizam. “São re-interpretações de seres imaginados pelo paleolítico, pelos gregos, egípcios, europeus nas suas primeiras impressões das terras novas conquistadas. Por outros livros onde se lêem descrições de outros seres. São interpretações, inspirações nos nossos devaneios criativos, que vão do mais monótono ao mais dinâmico”, explica o autor.
Totem é uma série mais complexa em termos de organização de elementos simbólicos e em que o auto-retrato desempenha um papel fundamental. O xamanismo e os elementos da terra cruzam-se de forma mais explícita nestas imagens místicas. Caminhando pelo humano, o animal e o espírito, Os Seres Imaginários é uma exposição de viagem entre a luz e as trevas. O auto-retrato e a auto-representação desempenham um papel importante na obra de Gonzalo Bénard, não fosse a sua produção artística uma forma de exploração própria no sentido de chegar mais perto de si mesmo. O autor preocupa-se constantemente com o perscrutar dos pensamentos que se fazem dentro de si, talvez numa tentativa de não perder o contacto com as suas emoções e desta forma melhor se relacionar com o mundo. Assim, já se podia ver esta tendência no seu percurso na série de fotografias The Hard Softness antes do seu fatídico acidente de mota.
O trabalho de Gonzalo Bénard está quase sempre intimamente ligado a vários elementos ancestrais como o simbolismo, a dicotomia corpo/mente, o corpo como material plástico, a identidade, a psicanálise, o xamanismo, a espiritualidade e a sexualidade. Nas suas melhores fotografias ele consegue mesmo reunir todos estes elementos em imagens aparentemente simples e de composição clássica. Gonzalo é um homem de cultura erudita e reúne uma multiplicidade de referências que são cunhadas nas suas fotografias de forma mais ou menos visível. Um dos elementos-chave do seu trabalho prende-se com a sua experiência de aprendizagem de arte, dança e filosofia com os monges tibetanos nos Himalaias, o que lhe valeu uma grande bagagem de autoconhecimento e espiritualidade que inseriu na sua vida e nos seus comportamentos.
Gonzalo Bénard nasceu com Síndrome de Asperger, um género de autismo que faz dele uma pessoa diferente, ainda que isso não seja facilmente perceptível. Racional por natureza e de temperamento fugidio, Gonzalo sempre achou penosa a “tarefa” de se relacional socialmente com outras pessoas. Isso fez com que se refugiasse dentro de si mesmo e, quem sabe, dessa forma conseguir atingir um conhecimento próprio, interior, maior do que a maioria de nós. Outro episódio marcante e importante para a compreensão do seu trabalho foi um período de coma em consequência de um acidente, que obrigou Gonzalo a refazer os caminhos do seu cérebro depois de acordar. Partes do puzzle ainda estão por ligar, mas isso não o preocupa. Gonzalo usa as suas experiências para criar as suas imagens e cria imagens para que elas o ajudem a refazer as partes da sua vida em falta. É uma compreensão de si e do mundo, uma cartografia da sua existência, o que podemos ver. Mas embora alguns digam que o seu trabalho é autofágico, talvez seja mais correcto dizer que é autocêntrico. O que não significa que exclua o relacionamento com o observador. Mais uma vez, a experiência de morte cerebral foi crucial na sua vida. “Quando acordei do coma, tomei finalmente a decisão de encontrar uma casa de madeira no meio de uma floresta perto do mar, longe de tudo para que eu pudesse me encontrar novamente. Corrigir as peças perdidas do puzzle. Encontrar memórias perdidas. Sabendo que eu só poderia conseguir isso se eu estivesse apenas a ser eu próprio na natureza. Após este primeiro reencontro comigo e com a natureza, às vezes dançando nu sob o luar ou a ser tocado pela luz da lua filtrada pelas árvores da floresta, mudei-me para a casa de campo por um ano sabático, longe, mais perto de mim”. Desta experiência nasceu a série Oneness, que simboliza e testemunha a comunhão do artista com a natureza e os espíritos do seu passado, enquanto tentava recuperar memórias e reconhecer a sua identidade. Juntando os pedaços de vida que o coma tinha estilhaçado. Em Oneness são visíveis sugestões ritualísticas, pequenos êxtases, ligações espirituais e animais, referências ao xamanismo e uma procura da vivência do corpo, em busca de um conhecimento interior. Esta série foi mais tarde desenvolvida num outro conjunto de trabalhos já referido com o nome Totem, mais uma vez ligados à ligação do corpo com a espiritualidade e o mundo animal. Afinal, não é o ser humano um outro animal? Este texto foi escrito sem uma lógica sequencial e segue uma estrutura circular. Como as imagens de Gonzalo Bénard, em volta de si próprio num mantra visual.