Está a decorrer uma exposição individual de Thierry Simões Sem data na Fundação Carmona e Costa, mostrando essencialmente obras que estão ligadas ao Desenho. Para este artista, que começou a divulgar o seu trabalho no início dos anos 90, o desenho é a disciplina fundamental da sua prática. Assisti a um dos ciclos de conversas entre o comissário Nuno Faria e o artista por ocasião do lançamento de um dos fascículos do Catálogo, diálogo esse que foi esclarecedor porque as peças de Thierry não são fáceis de interpretação, sendo por natureza composições densas que nos tem vindo a habituar ao longo do seu percurso artístico. Para ele o desenho é já desenho antes de o ser, tomando depois forma no traçado da folha, como explica o autor; debruçando-se plasticamente neste campo até ao seu próprio limite, conforme se pode verificar nas quatro salas expositivas. Os seus trabalhos estão repletos de peças onde o tratamento plástico ultrapassa de longe o formato e o suporte convencional, colocando a questão do desenho como um território sem fronteiras definidas. Por isso, surgem e coexistem num mesmo espaço dois pólos distintos: no primeiro, são mostradas composições onde o desenho se revela a si mesmo numa bidimensionalidade própria através de uma linguagem natural num brotar expressivo do seu traçado e da mancha que fazem parte das características intrínsecas de Thierry e num segundo momento, onde se observam os outros tipos de trabalhos: pintura; objetos; esculturas formadas por papéis suspensos e peças de chão, encostadas à parede.
Desenhar é uma forma de estar
Na primeira sala, estamos perante a simulação do seu atelier numa disposição informal de diferentes objetos de várias épocas com a linguagem que foi adaptando sucessivamente. Para a montagem da exposição Thierry estudou previa e cuidadosamente os espaços disponíveis a utilizar. Este passo foi determinante para, de seguida realizar um percurso dentro de uma configuração lógica no plano do ver, em jeito de uma instalação site specific. Apesar da exposição ter semelhanças no plano formal à apresentada no Centro das Artes José de Guimarães. Um dos pontos surpreendentes a reter, em que é pedido ao espetador um esforço redobrado do olhar para se habituar à escuridão, é a intervenção de um ambiente imerso negro e o contraste do aparecimento de linhas oblíquas formadas por feixes de luz natural intensa vinda do exterior, através das janelas tapadas.
Já na exposição na Quadrado Azul, Thierry criou a particularidade da mostra poder variar consoante a hora do dia, onde a perspetiva das peças transformam-se, criando cenários diferentes. Ele explora exaustivamente a qualidade dos materiais utilizados como a fragilidade do papel; o seu rasgar em gestos performativos; em sinais; rasuras e fissuras nas superfícies gastas, apoderando-se a pouco e pouco de uma forma sábia, de uma gramática empregue, fazendo parte do seu próprio vocabulário. O desenho é o percurso do tempo, por isso dedica a exposição ao fator tempo, sendo o cerne do seu trabalho, por isso a escolha do título "Sem data". O tempo é puramente mental, entendido em abstrato como se fosse algo que nos escapasse todos os dias numa constante espera suspensiva, dando a entender que o tempo é o espaço que medeia entre dois pontos. O tempo do desenho tem um percurso contínuo, numa espécie de diluição, que pode voltar de onde viemos, num exercício de reinterpretação, onde qualquer coisa acontece num presente, em tempo circular numa espécie de eterno retorno. O seu mecanismo é mais importante que a peça em si mesma. O desenho tem assim essa capacidade de ligar o passado numa antevisão e num futuro e do acontecer no presente, sendo visto como algo que está para acontecer. É um processo de lembrança, do fazer e desfazer, do repetir novamente noutro contexto. A exposição é um caso exemplar na escolha de objetos precários para a criação da passagem de corpos quase sem corpo relevando a qualidade da invisibilidade. A tridimensionalidade ganha assim uma dimensão notável criando instalações onde a transparência surge plenamente num jogo entre a luz e a penumbra.
Nas salas respira-se assim um ambiente propício onde o desenho existe em todos os lugares como foi assinalado de uma maneira assertiva nas palavras de Bruce Nauman, ditas por Nuno Faria, em que o desenho não equivale só a pensar, mas também a respirar, todos os nosso gestos estão prenhes de desenho. "Se dominarmos um pouco o desenho, todo o resto será possível" refere A. Giacometti. É acima de tudo um gesto que tanto pode ser traçar e riscar numa folha, como rasgar papel. Afinal não há memória mais recôndita do que a de desenhar. É dessa origem do reencontro sem tempo que aqui se trata.