DIÁRIOS DO UMBIGO

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É preciso explicar que este texto nasce de outro, escrito pelo Miguel Arsénio, colaborador da Vice. Depois de termos sido apresentados pelo Johnny Cash num concerto do Allen Halloween, as nossas conversas levaram-nos até à Brigitte Fontaine e Le Goudron. No meio de imagens e referências que nos remetiam para esta música, surgiu a ideia de escrevermos um texto – começado pelo Miguel e continuado por mim – e depois deixá-lo a apanhar frio e chuva durante duas semanas, abandonado num quintal qualquer. Um plano grandioso, à altura da natureza áspera de Le Goudron e do Inverno rigoroso que se sentia através da janela na altura.

O Miguel cumpriu a parte dele ainda durante a época dos temporais. Eu hibernei à espera de palavras melhores. E foi com o calor abrasador das últimas semanas que Le Goudron voltou a entrar pela janela. O que faz sentido. É uma música para estações duras. Não se dá bem com a amenidade da Primavera ou do Outono. É um animal que só consegue existir em condições extremas, com a raça e a solidão inerentes a quem foi feito para sobreviver.

Se tivesse uma forma humana, seria Brigitte Bardot a dançar descalça no alcatrão. Lânguida e indiferente  ao calor que lhe magoa os pés. Porque Le Goudron também está inundado de sexo, mas com uma sensualidade que não se compadece com o “bonito”. Aqui só há espaço para o “belo” e o “belo” pode ser triste sem perder o encanto.

No dia em que escrevi este texto, cruzei-me com uma citação do filme José e Pilar: “Deixar que o tempo passe, que as coisas amadureçam... E se tiver de ser, será. E se não tiver de ser, não será, acabou”.  Le Goudron é a banda sonora perfeita para deixar passar o tempo em espaços vazios de pessoas, mas cheios de fantasmas. Se no final ouvirmos um bater de coração que não seja o nosso, é porque chegámos onde nos esperavam.

Aqui fica a minha resposta ao desafio do Miguel Arsénio. Tarde, mas talvez não a más horas. Podemos deixá-la apodrecer no espaço virtual. Ou quando chegar o Inverno, imprimimos tudo e seguimos o plano original. Le Goudron tem fibra de vinil, não é um Mp3. Merece enfrentar a intempérie.

Le Goudron é o quarto single de Brigitte Fontaine, editado em 1969. Reza a história que tem contornos de canção revolucionária surrealista. A interpretação que acabaram de ler é da inteira responsabilidade da autora e das suas associações livres.

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