Em determinados dias da minha existência apercebo-me da esquizofrenia dos tempos modernos, que como um miúdo birrento recorre a tudo para se fazer notar. Numa destas manhãs, peguei no carro para ir até à Universidade Cadi Ayyad. Do Sul da medina, onde moro, até à universidade demoro uma boa meia hora a chegar. Sair da medina, percorrendo as anacrónicas ruas estreitas, onde os rosados turistas em calção caqui se misturam quase em harmonia com um desfile de véus e djelabas de todas as cores, exige uma extraordinária concentração. Tento não interferir com os trajectos alheios, observando de dentro da minha cápsula, o cenário urbano que passa diante dos meus olhos, como um filme, que poderia ter lugar em vários sítios do mundo.
Percorro a rua do Kasbah, onde a certa altura, numa viragem à direita, o espaço se reduz e a densidade humana aumenta. A distância milimétrica e calculada entre nós, as pessoas e as coisas, faz-me voltar a uma micro-escala, sair da cadeira de cinema e entrar em palco. As próximas duas viragens são sempre uma surpresa, de onde podem sair as situações mais inesperadas. É necessário prever essa dose de possibilidades. Bab L-Ksiba. Saio da medina, por uma pequena porta, pouco imperial e entro num mundo a outra escala, à escala da máquina, das grandes cidades do mundo.
O aparente caos que inibe e atemoriza os visitantes passageiros, revela-se uma dança coreografada. O marrakshi cria as suas regras e segue o fluxo da cidade. Atravesso Hivernage, com o seu casino e hotéis de luxo, de largos boulevards desenhados cuidadosamente por Prost. Leio na nova Gueliz com a sua arquitectura de um Marrocos libertado de todas as colonizações, uma declaração de “Somos modernos! Somos marroquinos e estamos orgulhosos!”: a imponente Gare do caminho-de-ferro “neo-imperial” à esquerda, o Teatro Real à direita.
Ainda estou a meio do percurso para atingir o meu destino, ao passar a velha Gueliz, onde se vê a evocação dos 100 anos de história deste bairro (1913-2013). O primeiro bairro “europeu” que hoje se mestiça com os indígenas, outrora segregados. Um pequeno posto de polícia sinaleiro, marca o centro de Marraquexe, uma espécie de Arco do Triunfo, sem a máscara da monumentalidade. A partir deste ponto temos acesso às múltiplas dimensões culturais da cidade: a medina, a modernidade, o campo, os subúrbios, a estrada de Casablanca, a estrada de Essaouira.
Sigo para norte, passo uma das novas referências espaciais da cidade, o Mac Donalds, que se camufla por trás de de uma transcrição fonética para o alfabeto árabe. De repente ouço uma sirene de um carro de polícia em alta velocidade. Afasto-me para deixar passar e regresso tranquilamente à minha fila, quando começo a ser alertada pelos polícias que me gesticulam incessantemente. Sem que me tivesse apercebido, estava integrada numa escolta policial de uma caravana de mercedes negros em alta velocidade. Seria uma visita oficial de algum ministro, talvez do palácio real, ou de algum diplomata estrangeiro. Saí da caravana, assim que me apercebi e fiquei a ver passar o desfile, indagando qual a urgência destas manifestações de poder que se sobrepõem aos ritmos dos lugares por onde passam.
Chego à universidade, à Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Cadi Ayyad de Marraquexe. Já não há muitos lugares assim. O ritmo de Marrocos apodera-se das suas instituições. Por entre seminários internacionais, com universidades europeias que, com frequência, desfilam pelos corredores da universidade, vive também uma realidade muito local. Apercebemo-nos, apenas pelos trajes, da quantidade de alunos que provêm do sul, das regiões do Sahara. A presença feminina é muito considerável, uma maioria, mesmo. Vemos mulheres de véu, outras perfeitamente ocidentalizadas e outras com os seus costumes sarahouis, de cores e geometrias deliciosas.
Os estudantes em Marraquexe, não têm acesso a grandes bibliotecas, nem têm o laptop integrado na ponta dos dedos, como acontece hoje no Ocidente. Os estudantes em Marraquexe sentam-se nos jardins, à sombra das árvores de pés descalços, para garantir um melhor conforto face ao calor. Estudam pelos seus cadernos, onde tiram notas segundo o que lhes parece de maior relevância. O ambiente é bucólico. Ouvem-se os pássaros na Universidade de Cadi Ayyad.
Esta esquizofrenia moderna deixa-me por vezes perplexa. Mas a chave está em conseguir abrir o espírito a todo o conhecimento e emoção que emana de cada poro da cidade.