O Galeto é o melhor sítio para se fazer um dueto.
Este podia ser o slogan do “Galeto” de uma acção promocional para um Dia dos Namorados ou para um novo reality-show “in loco” ou, seguindo as recomendações de um estudo de mercado recente, para reforçar a sua notoriedade enquanto snack-bar e restaurante ideal para uma refeição a dois nas suas mais diversas configurações humanas e relacionais. Mas não é! Apesar de que 87% dos clientes do “Galeto” em 2012 - dados fornecidos pela gerência, a quem aproveitamos para agradecer a imensa e generosa disponibilidade no fornecimento destas informações - vão acompanhados por uma pessoa. Em caso de necessidade para melhor percepção da credibilidade e aferição da pertinência e eficácia do slogan frequentem o “Galeto” a qualquer hora para comprovar o que digo. A qualquer hora é como quem diz a partir das 21h.
Para além disso, importa dizer que ter uma experiência degustativa a três no “Galeto” - à semelhança da maior parte das experiências triangulares, salvo raras, abençoadas e inesperadas excepções -, é mais arriscada, exigente, laboriosa e nem sempre está garantida a tripla satisfação dos participantes. A três no “Galeto” é comum ouvir-se esta frase por uma das pessoas-vértice, qual zumbido: - É que não dá jeito!/ - nenhum! – este pronome indefinido é excepcional, apenas usado em casos de irritação máxima retractora ou de inibição social aguda por via da arquitectura de interiores.
A Humanidade do/no “Galeto”
Alínea a): o departamento de Recursos Humanos
Antes de mais e sobre este departamento, só tenho uma curiosidade: quem será a pessoa responsável pela contratação dos funcionários? Quem será o responsável recurso-humanístico que consegue manter uma equipa unidirecional, ao nível da dinâmica e eficácia do serviço, apesar das suas diferenças etárias e sócio-culturais?
Detrás dos balcões do “Galeto”, é observável uma especificidade humana idiossincrática - qual “tableaux-vivants” Tatianos, Fellinianos, Kubrickianos, Lynchianos, Jarmuschianos, Cattelanianos, Wurmianos, Castelluccianos, César-Monteirianos, etc. - dos funcionários do Galeto. Alguns deles parecem retirados de filmes como “As Férias de Monsieur Houlot”, “As Recordações da Casa Amarela” e até “Roma” ou “Amacord” se o Fellini tivesse vindo fazer um filme sobre ou em Lisboa. Talvez o Woody Allen os inclua.
Todos eles são trabalhadores muito peculiares, desde os/as cozinheiros/as, aos chefes de sala até aos/às empregados/as de balcão. As suas faixas etárias vão dos 21 aos 75 anos. Alguns deles pela sua longevidade a partir de uma certa hora dormem em pé e terão histórias inacreditáveis para contar – imagine-se o que já lhes pediram, as conversas que já ouviram, as revelações que já lhes confidenciaram.
Alínea b): a clientela do “Galeto”
Em termos de clientela que produz o “ambiente”, há um “Galeto” antes e depois das 22h, tal como no preçário, por razões diametralmente opostas. A maioria de pessoas que lá vai comer depois das 22h acabou de trabalhar, quem lá está detrás do balcão a partir dessa hora, terá começado a trabalhar, daí o aumento do preço.
Cada vez que lá vou, constato que o “Galeto” é uma espécie de amálgama de todos os segmentos e tipos sociais. Uma moldura dourada anacrónica que delimita uma humanidade actual. Um cordão humano unido pelos balcões em torno de um objectivo comum: comer, encher o bandulho, matar a grisa, degustar, etc. Neste mural social, podemos encontrar pessoas e respectivas figurações que possibilitam visões estilísticas inesperadas, a escuta de conversas inimagináveis - de teor sedutor-sexual, político, desportivo-clubístico, económico, consumista, circunstancial -, e o testemunhar de expressões faciais inquietantes. Em suma, o “Galeto” é um caleidoscópio social em que basta rodar a cadeira a baixa velocidade para acedermos a imagens múltiplas e maravilhosas, qual documentário retroactivo em tempo real. Senão vejamos.
Ele são senhores doutores e senhores engenheiros que continuam a gostar de ser tratados assim porque sempre o foram pelo seu estatuto e capital simbólicos de um tempo anterior ao 25 de abril mas que se manteve até aos dias de hoje, qual “status quo” anacrónico e parolo. Ele são homens solitários à procura de uma palavra amiga que vem quase sempre detrás do balcão. Ele são putas e proxenetas ou alcoviteiros que vão celebrar mais uma noite lucrativa. Ele são prostitutos/as de luxo e clientes abastados. Ele são adeptos de Benfica e do Sporting vindos dos jogos. Ele são figurantes em talk-shows dos canais generalistas. Ele são líderes políticos: o último que eu vi tinha acabado de se insurgir contra a distribuição de preservativos nas escolas secundárias e a defender como melhor contraceptivo feminino para evitar gravidezes indesejadas o método “manu militari”, que, não trocado por miúdos, quer dizer masturbação. Ele são pessoas comuns que assumem perante o empregado que os serve que sentiram vergonha pelo seu silêncio prolongado após a pergunta inofensiva mas que se tornou incómoda: - Sente-se feliz? Ele são actores e actrizes, bailarinos e bailarinas depois de acabarem os ensaios ou os seus espectáculos. Ele são taxistas nocturnos que são grandes admiradores de palitos. A propósito fui testemunha de uma frase capaz de ser classificada como o cúmulo do taxista ecológico, já que se estava a congratular com o aumento do número das vítimas mortais nas estradas portuguesas o ano passado, pois assim havia menos pessoas a poluírem o ambiente. Ele são gigolos místicos devotos da Nossa Senhora de Fátima. Ele são super-engatatões revestidos a Hugo Boss e a Giorgio Armani, mas também a Zara e a Massimo Dutti. Ele são empresários de sucessos de países com economias emergentes que pedem sempre sumos de laranja natural ou de morango para as acompanhantes e vinho tinto do Alentejo para si. Ele são escritores aspirantes, promissores, consagrados, ultrapassados e decadentes. Ele são vegans contrariados que acompanham carnívoros ávidos de proteína animal. Ele são pessoas a ficarem felizes com uma passagem de um livro que fala de Paris no princípio do século XX como uma pastilha efervescente a cair num copo com água. Ele são pessoas vindas dos seus trabalhos que vão ali ter uma refeição quente feita na hora e a preceito. Ele são pessoas a delinearem estratégias de imortalidade. Ele é isto. Ele é aquilo.
Excurso-em-homenagem-incógnita-a-um-docente-de-Semiótica-detestável
Pensando em situações bizarras no “Galeto”, não resisto a partilhar uma que me aconteceu. Vindo de um espectáculo na Culturgest, apeteceu-me comer um Bife Tártaro. Sempre gostei imenso de ver a sua confecção à minha frente. Na circunstância estava a ser atendido por um funcionário sexagenário encostado aos setenta e com os poucos cabelos que tinha colados e revirados na sua calva superfície, sabe-se lá com o quê, à outra extremidade para a ocultar de forma bastante desastrada. Adiante que eu não sou barbeiro, nem cabeleireiro, muito menos a pessoa ideal para falar em calvície.
Depois de ter feito de forma competente a mistura dos ingredientes e de me ter feito arrepiar as têmperas de prazer, e passados dois minutos da degustação, testemunhei uma escarradela digna de um profissional da expulsão do catarro para um dos caixotes de lixo, não sem antes ter controlado com os óculos já suspensos no nariz se haveria alguém a testemunhar tal acto pré-ASAE e já agora pré-confecção do Bife Tártaro. Não será fácil adivinhar o que se terá passado a seguir. Dando-vos todo o espaço mental para exercitar a imaginação fílmica, não resisto a partilhar o que sucedeu.
A saber: não dei mais uma garfada e chamei o dito empregado. Estando a um metro de distância e seguro que não haveria reverberação, disse-lhe o seguinte: - Permita-me um reparo, depois do que acabou de fazer este bife dever-se-ia chamar Bife Bárbaro.
To be continued...
Nelson Guerreiro (escreve em desacordo ortográfico)