- Te quiero. Fui ouvinte involuntário desta expressão amanteigada de sentimento profundo uma noite destas na pista do Lux ao som de Think Twice de The Detroit Experiment. A seguir a esta veio outra que fez quase todas as pessoas levantarem os braços e vociferarem uh oh uh oh uh oh, ao mesmo tempo que se sentia o chão a tremer. Qual? É a pergunta. Esta é a resposta: Time de Pachanga Boys. Num olhar panorâmico, deparei com uma mulher a um canto a chorar. Tive a sensação de que ninguém se estava a dar conta. Passados dois segundos, uma pessoa pegou-lhe na mão e limpou-lhe as lágrimas com um cubo de gelo. Será que o coração ficou congelado e deixou de sentir?
- On and on. We'll need Roll On. Por entre os corpos dançantes, irrompe uma pessoa que me diz esta frase e desaparece sem deixar rasto. A libertação tem destas coisas, pensei para mim mesmo. Denuncio a utilização eufemística da palavra libertação.
Nas pistas dizem-se frases extraordinárias, deslocadas do mundo, atestando que nestas alturas ninguém quer realismo, nem reconhecer a realidade real e de proveniência que foi suspensa a partir do momento em que se entra numa festa ou num clube, mas também numa sala de teatro ou de cinema. O lugar da festa converte-se num território mágico.
À noite, toda a gente quer sentir a magia da ficção. A pura ilusão. Adeptos convictos de ilusionismos e malabarismos, a maior parte de nós procura uma verdade possível dentro da ficção, numa busca desenfreada de conversas cúmplices e de afinidades electivas. Uma verdade desejada, saborosa, insondável, mas imprevista duas horas antes.
O que é uma festa? É um lugar, ou melhor, é um espaço-tempo inexistente antes e depois da sua vivência, apesar das suas estratégias de antecipação (acções comunicacionais e narrativas criadoras de expectativas) e de prolongamento (documentação: fotografias, vídeos e posts e comentários nas redes sociais), logo da sua vida artificial. Uma festa é um espaço-tempo em que os códigos mudam, onde os ricos e os pobres podem beber - todos, sem excepção -, em copos de plástico e onde, a partir de uma certa hora, se contam pelos dedos os que se preocupam se há ou não limão, se o sumo é daquela marca ou se o copo tem muito gelo. Poderosos e oprimidos, arrogantes e humildes, chefes e empregados, espertos e parvos, chungas e estilosos, entendidos, desentendidos e mal entendidos, caras lindas e feias, partilham esse lugar com nome que não aparece nos mapas, apenas nos roteiros. Dir-se-ia que uma festa é um oásis, uma ilha de felicidade e sons estridentes, de alegria e de cores, onde todos parecem estar bem, pelo menos nalgum momento. Os locais das festas não se regem pelas mesmas leis, nem os horários são iguais. Por vezes, e em dias de festa rija, não se paga o que se consome e o impossível pode ocorrer em qualquer instante. A permissividade substitui a rigidez das normas sociais. As diferentes formas de viver a sexualidade num clube ou numa festa mostram-nos uma sociedade descontraída que horas antes não se esquecia do pudor e da contenção.
Por outro lado, extraordinariamente surpreendente é ver quão mal que passa muita gente nas festas. Por exemplo, bebedeiras precoces deitam por terra vítimas logo nos primeiros momentos de euforia, ou a frustração de tantas pessoas que trazem consigo expectativas excessivas que centram na festa todas as possibilidades de diversão, num encontro amoroso, ruptura com a vida que se leva e esquecimento dos problemas. Já para não falar das discussões acesas e cenas de ciúmes entre casais ou amigos que encontram na festa o seu particular campo de batalha. A verdade é que cada festa, tal como Dr Jekyll and Mr Hyde, tem duas caras que se ocultam e sobrepõem continuamente num jogo, divertido para uns, trágico para outros. Não há alegria sem risco de dor e numa mesma festa há aqueles que se encontram e se amam e outros que se separam e sofrem. Mas todos terão, mais tarde ou mais cedo, que voltar para casa. É bom não nos esquecermos disso.
Mudança de sujeito. Vou passar a ser uma terceira pessoa do singular.
Duas horas antes, testemunhou a escrita num pedaço de papel resgatado ao toalhete-base de uma refeição deliciosa as seguintes palavras: "Dear Prince Charming, just five more minutes! Sincerely, your sleeping beauty." Ensimesmado, enfrentou o silêncio e apeteceu-lhe dizer algo à pessoa destinatária daquela nota (qual) preliminar. As suas palavras seriam: “Querer é o que fazem os corpos e tu e eu já não somos só fantasmas.” Constatando que essas palavras não seriam ajustadas ao destinatário daquela nota preliminar, e esmagando qualquer vislumbre de angústia, auto-induziu, fazendo um desvio de emergência, uma rebelião anímica nascida da necessidade de para refrear tão flagrante alavanca de tristeza.
Já em processo, cogita: - o primeiro passo para ser feliz é um acto de coragem que incorpora o passado como um álbum de fotografias anacrónico que deve ficar registado num anal cósmico que não pode ser transladado para o futuro. Estando determinado em sobreviver ao tropeção passional para dar vazão a uma emoção tão exigente, numa mistura de recolhimento e abrigo a uma dor que parecia ser duradoura e ardente, ele decidiu telefonar– a alguém que não será para aqui chamado - e dizer-lhe: "Deixa-me em paz, por favor. Devolve-me a minha vida."
Desligou e os seus olhos transbordaram lágrimas. Olhando para a parede, projecta um “best of...” imagético dos momentos passados com a pessoa que não será para aqui chamada. Acomete-se, recusando a satisfação demencial de sentir a dor, porquanto recompõe-se, lavando a cara com água fria na casa de banho. Casaco vestido, saiu para a rua à procura da primeira aragem do dia lhe bater na cara, secando o suor que gotejava no seu corpo há dois minutos, pelo batimento acelerado do seu coração. Pós-seco, dirigiu-se a uma cervejaria e pediu uma imperial. Já com os tremoços na boca e com a Sport-TV no horizonte, foi acossado por um turista que lhe perguntou: - Do you think this is the right place to bring my love to eat? A esta pergunta inusitada, ele respondeu: - Man, if you love her and if she loves you, what does it matter? I’m sorry. This is the right place! This food will be a fucking great appetizer... I recommend you one classic portuguese hors d’oeuvre: peixinhos da horta." O turista confiou e pediu uma mesa para dois.
O resultado do jogo de futebol não lhe interessou. Ainda assim, bebeu mais duas imperiais e comeu tremoços avidamente como se fosse um roedor compulsivo de unhas. Tomou uma decisão. É um segredo que tem que ser bem guardado, pelo menos por agora. Encarou a rua já escurecida com passos serenos. Entrou no carro e acendeu um cigarro. A música sobrepôs-se à sua serenidade e começou a dançar debatendo-se com o cinto de segurança e com o carro da Polícia Municipal, onde estavam dois agentes curiosos que o fitaram e um deles perguntou-lhe: - Essa música é o quê





























