DIÁRIOS DO UMBIGO

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Ouço o meu apelido, não muito forte. Está um final de tarde ameno, não na cor do céu, esse é cinzento pelo de gato, mas no silêncio que se faz ouvir. Uma sucessão de micro 4’33’’. Um silêncio que faz e se faz bem sentir. Em pleno largo Rafael Bordalo Pinheiro. Um velho amigo do curso de Guias do Jardim Botânico. Conversa sobre as agendas culturais de cada um, nesse dia havia inauguração no Museu do Chiado, e a promessa de encontro a combinar num prazo breve. Lisboa que se encolhe no espaço e que se estende no tempo. Seremos capazes de terminar sem – “então até qualquer dia”, “está combinado”, “depois ligo”?

LargoTrindadeCoelho

Rua acima, sem pressa. O foco é difuso. Um casal de turistas, pouca gente e da Cervejaria Trindade, mutismo. Novo largo – Trindade Coelho, ou em alternativa – do cauteleiro. Não avanço. Do lado esquerdo, quadro em ardósia com a inscrição – promoções. Olho fixamente para a montra e tudo me parece vagamente familiar. Sim as capas bicolores dos Livros Cotovia. Como não as reconhecer? Como lhes ficar indiferente? A estas ou às edições da Assírio & Alvim, da colecção Leya Bis ou às da Tinta da China. Por cima de cada exemplar um apelativo marcador: 3, 5 e só alguns, lá no canto, 10 euros. Vontade não falta. Entro. Rádio sintonizada na Antena 2 a passar um compositor que me era desconhecido – Hugo Alfvén. Perfeito para a contemplação. Folhear um ou outro exemplar que me chama mais a atenção e contagem mental para não gastar mais da conta. Uma parcimónia forçada, mas necessária. Já no final da sala outros objectos que me são queridos – uma estante com vinil e outra com as edições da Chili Com Carne. Na mão dois exemplares: Desmedida – Crónicas do Brasil de Ruy Duarte de Carvalho (3 euros) e Hotel da Bela Vista de Odon Von Horvath (também a 3). Nota de rodapé: foi com esta peça que, pasme-se, Joaquim Monchique se estreia como protagonista em 1991. Saco de papel e marcas de e para coleccionadores como brinde. Não engana. Sabe fazer quem cuida. Vão até à Artes e Letras, às promoções, até dia 15 de Março. De certeza que encontrarão aquele, o livro.

politecnica

O tempo esse mantém-se cinzento, o outro estranhamente encolheu. Rua da Escola Politécnica acima e antes da entrada para o Museu Nacional de História Natural desvio à direita para o Teatro da Politécnica. Levantar os bilhetes para a mais recente peça dos Artistas Unidos, O palácio do fim de Judith Thompson. Na mesa à entrada, cara conhecida, e que conhecedora dos meus gostos, chama-me a atenção para colectânea de Harold Pinter, claro está a preço especial. Mais barato é também o bilhete - todas as Quartas-feiras, às 19 horas, 5 euros.

Por saber que as suas peças, quase sem excepção, exigem estômago reconfortado, cruzo a rua em direcção à confeitaria Císter. Os livros sempre eles. Agora na forma de arte azulejada e na pessoa de Eça de Queirós. De volta. Sala cheia. Três personagens, três monólogos, cada uma delas a sofrer na solidão os traumas da guerra do Iraque. Interpretações sentidas e textos que nem sabres. O último, a de uma mãe iraquiana. Os horrores descritos são muitos. Retenho o abate das tamareiras pelas tropas norte-americanas por constituírem potenciais abrigos para terroristas. Até aqui chegámos? O que tememos?

Reflectir. Confrontar. Descentrar. Também para isso estão os livros, o teatro. E ao preço que se nos apresentam será arrogância, como mínimo, desaproveitar.

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