DIÁRIOS DO UMBIGO

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Fechada na minúscula sala de processamento de amostras, olho em silêncio o amplo quadro branco à minha frente. Nele, a graúdas letras maiúsculas, está inscrita a mais recente palavra da secção de passatempos do Herald: I N F L E C T S.

Rodeada de lâminas de vidro, equipamentos de corte fino e microscópios, frascos de soluções etílicas precisamente rotuladas, e microfotografias a preto e branco de tecido neural espalhadas pelas paredes, fito imóvel e em silêncio as letras no quadro, e tento reorganizá-las em novas palavras. Este é um dos jogos que Peggy, a simpática senhora natural do Mississippi e responsável pela microscopia electrónica, espalha pelo laboratório.

Sinto-me como uma criança neste jogo de tentar descobrir as novas palavras, não só pela simplicidade, mas pela fadiga que, em mim, todo o processo causa. Normalmente as possibilidades ficam a fermentar no quadro durante uma semana, com alguns (não muitos) transeuntes, como eu, fazendo curtas paragens e tentando a sua sorte. Quando me ocorre uma hipótese, corro para o quadro de caneta em riste e, na minha melhor letra, escrevo-a com um sorriso aberto: I N S E C T.

Não está ninguém na sala... damn!

peggy

Um mês após a minha chegada, tarefas simples como estes fáceis jogos de palavras são ainda empreendimentos gigantescos e geradores de tumulto na minha cabeça demasiado lusitana, que teima em não desagarrar do vocabulário português. Atravessar o Atlântico de uma ponta à outra obriga-nos a vários ajustes, e os tempos de adaptação são tempos de tremendos desgastes de energia, em esforços de abandonar antigas rotinas e ferramentas, acomodá-las a um canto, e reabrir espaço a todo um novo conjunto de peças.

Alguns exemplos:

– As ditas aberturas fáceis (de todo e qualquer produto que compro no supermercado) são, para mim, quebra-cabeças que acabam, invariavelmente, em destruição maciça da embalagem...

– Continuo a insistir em dar moedas no café, na tentativa de facilitar trocos, o que cria sempre um gigantesco ponto de interrogação na expressão da pessoa que me atende...

– Ainda reajo chocada à instantaneidade do processo: pensar – propor – fazer – está feito! – neste país. Venho moldada aos tempos europeus, e aqui tudo se processa muito rápido!

Mas, no meio disto tudo, confesso que o que mais me tem custado aceitar é o estado de absoluta confusão em que se encontra o meu outrora impecável e fiável sentido de orientação. Desde que me lembro de mim mesma, que sempre possuí uma natural intuição de posicionamento geográfico, da qual me fazia valer quer no dia-a-dia, quer nas amadas viagens pela Europa e América. Mas, desde que aqui cheguei, de nada – e repito – de nada me vale... pelo contrário!

Repetem-se episódios em que durante uma trivial conversa, aponto absolutamente confiante o norte, referindo-me, por exemplo, ao novo bairro in da cidade; até veementemente me dizerem que a extremidade da flecha imaginária que uso cai, afinal de contas, a sul! E que aquela é, até, uma das áreas da cidade que vivamente me desaconselham de visitar. Após repetidas tentativas falhadas de defender a minha posição, reconheço altamente frustrada o meu erro.

A situação volta a acontecer vezes sem conta. Entre argumentos sucessivos, ainda incrédula, insisto, dizendo: “mas se o mar é naquela direcção, o norte é, logicamente, ali!”. Pois, essa é, precisamente, a causa do meu problema por cá: o sol “nasce” no mar! Ir em busca de um esplendoroso pôr do sol sobre o mar, como aqueles a que desde sempre me habituei, é aqui... digamos... impossível! E, para além do mais, anda a aniquilar o meu GPS interno que, aparentemente, continua a associar ‘mar’ a ‘oeste’ sem se dignar, sequer, a consultar o reajustado cérebro, e recusando ser recalibrado com as novas referências disponíveis...

Sou uma mulher ponderada, prevenida, que gosta de planear e antever todos os possíveis cenários. Sempre. Não gosto de surpresas. Mas isto, confesso, passou-me completamente ao lado... e vim absolutamente despreparada. Como é que nunca me tinha passado pela cabeça que, nesta praia, o sol não se põe no mar?

Um momento. Lembrei-me de outra: ITSELF!

Vou só ali ao quadro escrever, antes que mais alguém se lembre! E esperar que desta vez haja testemunhas do meu tremendo feito.

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