A primeira vez que dormi num quarto de hotel já os ossos se queixavam das mudanças de tempo. Foi talvez a experiência tardia que inspirou o imenso fascínio que sinto por quartos de hotel. São melhores quando assépticos, pouco decorados e sem evidências de terem lá dormido outros, com os lençóis passados a ferro e as dobras de terem sido cuidadosamente guardados ainda visíveis. É remédio santo para insónias. Não há memórias, passado, futuro ou obrigações e implicam sempre uma situação extraordinária, boa ou má.
Há uns anos, depois de ter ido a Coimbra ver uns concertos das bandas do seu afamado (e rejeitado) rock’n’roll, sem dormir e ainda a transbordar de adrenalina, meti-me num comboio ao pôr do sol de volta a Braga. Duas ou três estações mais tarde, apercebi-me que o destino do meu comboio era oposto a Braga. Como a ressaca é mais amiga das acções impulsivas motivadas por pânico que de raciocínios lógicos, saí na estação seguinte. Mas dali, àquela hora, não passavam comboios que me levassem para casa.
Por ter fama de dormir acordada e de me meter em problemas evitáveis, o embaraço de recorrer a amigos para me socorrer era superior ao medo de dormir sozinha numa estação de comboios escura e deserta. Optei por uma terceira solução mais excêntrica, a de gastar uma significativa fatia do meu diminuto salário num quarto do primeiro hotel que encontrei. A recepcionista não fez o esforço de disfarçar o espanto de me ver: nova, mulher, e sem reserva nem mala.
Fui para o único restaurante aberto que me acolheu de luz branca e novela na televisão, onde pedi uma fatia de pizza e uma coca-cola. Tenho uma fé cega na coca-cola em momentos de vulnerabilidade. Atiçam-me os sentidos o líquido moreno, as curvas da garrafa, o vermelho do rótulo e, por fim, o fumo ondulado e o som hipnotizante libertados quando a cápsula é removida. Mas a ilusão dissipa-se no momento em que a levo à boca, como se um beijo num jovem Paul Newman o transformasse no Fernando Mendes.
Tive de pedir um fino e o empregado, que me observava sem descanso nem recato, viu aí a oportunidade de me infantilizar com sugestões de que não tinha nem a idade nem o sexo certos para beber álcool sozinha às dez da noite. Um tique lusitano no qual se levam a sério apenas as mulheres acompanhadas e os cidadãos que tendo mais de trinta anos, se vestem discretamente com roupa apropriada para a idade adulta.
De volta ao quarto pequeno e imaculado, escrevi um guião para uma eventual curta metragem sobre um encontro num quarto de hotel, tomei um duche prolongado sem remorsos nem considerações ambientais, e deitei-me com a sensação de que poderia ser feliz se vivesse de quarto de hotel em quarto de hotel, com o guarda-fatos despido de roupas e as mesas de cabeceira livres de fotografias de quem gosto.
A sensação repete-se agora num quarto em Viana do Castelo, quase uma década mais tarde e várias experiências em hotéis passadas. Vim a Viana porque esta Páscoa me pediu que renascesse, e o processo é uma road trip pelo Minho.
A beleza da paisagem e dos edifícios históricos do Minho é assombrada pela inexistência de vida nocturna, as ruas ficam vazias depois das 19h e em Braga recentemente nem sequer há luz pública em várias zonas do centro. Muito pouco acontece numa viagem que poderíamos ter feito num dia – onde há rio ou mar, sentámo-nos a ver a água e a queixar do marasmo e dos sonhos que morreram, quais Carlos Eduardo e João da Ega no final dos Maias, e ao anoitecer comemos petiscos em tascas pitorescas para um conforto falso de autenticidade e pertença. Mas é num quarto de hotel despersonalizado que me sinto em paz. Será que há como viver assim? E sendo impossível dormir em hotéis diferentes todos os dias, haverá truques para dominar a vontade constante de fuga e transição?
Isto não era para ser um diário de questões existenciais ou do coração mas antes de música e de filmes. Como cantam os Capitão Fausto que vimos agora em Viana – “nunca faço nem metade do que me diz a vontade, nunca faço nem metade do que me diz a razão”.