Antes de adormecer numa noite em que quase me esqueci de ter existido. Depois de jantar e a reboque de uma epifania, lembrei-me de excertos de uma frase de August Strindberg que li há muitos anos sobre os sonhos, aquando de uma pesquisa para um trabalho para a disciplina: Teorias do Imaginário. Reencontrada, passo a reproduzi-la. “Há já muitos anos que tomo nota de todos os meus sonhos e cheguei a esta conclusão: que o ser humano leva uma existência dupla, que as imaginações, as fantasias, os sonhos, têm uma realidade. De modo que todos nós sonâmbulos espirituais que, durante o sono, praticamos actos que, pela sua diferente natureza, nos perseguem no estado de vigília, com a satisfação ou com o peso de consciência, o medo das consequências.”
Sonho sonhado
Arrebatado pelo cansaço, adormeci com a televisão ligada, mas sem som, e com a aparelhagem a difundir uma voz de rádio embaladora que anunciava uma festa num castelo no meio do nada, com a garantia de um sistema de som assegurador da emissão poderosa de decibéis, da existência de roulottes, onde se poderão usufruir de massagens ayurvédicas, adquirir pães com queijo, cogumelos, azeitonas e com passas e nozes de agricultura biológica e da presença dos melhores DJ’s do mundo.
Estou no meio do campo. À minha volta desvela-se uma paisagem verdejante. Avisto uma família feliz a preparar um piquenique. Escolhido o sítio, pousaram a cesta e uma geleira revestida de plástico com motivos florais. Vejo o pai a acocorar-se depois de se ter despido e a aquietar-se em posição canina, servindo de mesa todo nu e a filha mais nova a colocar-lhe uma toalha de xadrez encarnado sobre as suas costas. A mãe encosta-se a ele e começa a cortar um chouriço de seitan e um dos filhos testemunha esta acção comprovativa da harmonia familiar com um sorriso e com uma flor no canto da boca.
Subitamente surge uma vaca roxa no horizonte em que as suas tetas estão a ser ordenhadas por uma personagem de desenhos animados que gosta de caramelo. Ao fundo, desce um outdoor com a imagem de três diamantes com a seguinte legenda: BECAUSE A DIAMOND IS FOREVER.
Nesse preciso instante, sobrepõe-se uma voz sem corpo a dizer para outra pessoa sentada a contemplar o piquenique que me é familiar: “Só conhecemos uma vida, a nossa…” De seguida, aparece uma mulher com um vestido de lantejoulas e com uma garrafa de champanhe e diz: “I like you so much”.
Esta frase esvai-se porque irrompe a minha música preferida para dançar de olhos fechados. Abro os olhos e a meu lado tenho uma fotografia de uma mulher nua depois de ter cortado o cabelo, sendo visíveis os restos dos cabelos subtraídos. Ouço uma voz ao longe a dizer ao megafone: “Ela tem a força obscura do instinto”.
Duas pessoas transportam um cartaz com as seguintes palavras: “O sonhador não tem poder de decisão.” Assaltou-me o significado das palavras: melancolia, estranheza e compaixão. Ressoa uma música de autoria desconhecida. Se me lembrar até à última revisão do texto, fica prometida a sua partilha. A minha mãe telefonou-me e eu não atendi. Estou farto de convites para ir comer cozido à portuguesa a Sintra e voltar a casa às 5 da tarde, sem ter visto o monumento classificado e as marés vivas de inverno.
Alguém me pergunta sob uma chuva inesperada e intensa: “O que tem a dizer sobre as aspirações do sonho e as diversas constelações da vida irregular?”
Já não estando seguro da sequência das imagens oníricas, lembro-me que um amigo de longa data aparece com uma revista aberta numa secção intitulada “Fan Talk” e que, sem ai nem ui, desaparece sem deixar rasto. Esse alguém reaparece passados alguns instantes e mostra-me uma capa de uma revista em que se destacam as seguintes palavras: VIVRE AVEC SA FOLIE.
De repente, aparece o meu irmão empunhando um copo de vinho branco e pergunta se preciso de mais alguma coisa. Já é noite cerrada e os cavalos parecem estar cansados. Encontro-me já dentro do Palácio da Pena e os meus olhos avistam cerca de mil pessoas no jardim e a casa de banho está livre. A música é de baile do século XVIII e reparo num homem distinto que não sabe dançar.
Regressado ao campo, testemunho o Homem das Farturas, que tem um aspecto pouco comercial, a vociferar as seguintes palavras: “Toda a gente sonha, mas os sonhos são secretos, são de um só. Quem quer farturas?” Olho para ele e vejo-o a comer uma sopa miso instantânea. Os meus olhos ficaram em bico. “Viram a Kate Moss? Não?!” Estas palavras surgem numa faixa apegada a uma avioneta.
Surge um homem a dizer que tem frio e reparo que tem uma tatoo no braço a dizer: Gaspar, 1972. Vem-me à cabeça um título para um texto sobre uma dupla amorosa condenada: “A vontade do impossível”.
Recai sobre mim uma gregueria de Ramón Gomez de la Serna: “O amor é não ter medo do hálito quando se acorda” e o meu irmão mostra-me uma fotografia em que se vê umas pernas destacadas por sapatos de saltos altos dourados, revestidas por mini-meias brancas de mousse, uma saia plissada preta e uns dedos com as unhas pintadas de vermelho. Aaaahahhhhhh.! Acordo sobressaltado. O que se terá passado?