DIÁRIOS DO UMBIGO

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A meio de uma tarde ensolarada da semana passada comecei a desconcentrar-me da leitura de “Exploradores del abismo” de Enrique Vila-Matas. Li e reli esta frase três vezes: “Porque mis constantes vitales de esta mañana son el sol que saluda los despertares, el descubrimiento del placer de ser cortés, la revelación algo tardía de que todo es excepcional, el despliegue de gentileza en el trato a las personas, la impresión de vivir en plena tempestad de calma, la satisfacción de haber perdido unos kilos, la gestión de la herencia literaria del antiguo ocupante de mi cuerpo, el abordaje suave de una lógica espartana del trabajo, la creencia de que los gordos son los demás, la utilización de la ironía templada como rasgo de elegancia, de tímida felicidad, en definitiva.” Fiz uma pausa e abri as persianas para que o sol embatesse nas paredes e nos objectos da sala, dando início a um espectáculo de sombras que me atordoou durante quase dois minutos. Aplaudi de pé e saí da sala.

Reconhecendo a fome, enquanto necessidade fisiológica capaz de produzir desvios de emergência da atenção, abri um iogurte cremoso de sabor natural açucarado e na contra-tampa deparei com a seguinte frase: “Uma colher cheia de afecto. Mais uma, e outra.” De imediato, ressaltou uma frase inquietante, qual rebate da consciência: - Quero lá saber da erótica do poder! Acolhendo-a com estupefacção, dei a última colherada que me apaziguou, tendo sido sobressaltado por uma outra frase de F. Scott Fitzgerald na sua obra The Great Gatsby. Frase essa mais condizente com a erótica laticínia, igualmente cremosa, e com a naturalidade da partilha de estados anímicos num registo delico-doce aquando da ocorrência da paixão e passível de ser manifestada em mensagens matinais escritas em post-its deixados dentro do frigorífico, na parte interior do tampo da sanita, na almofada desocupada aquando do despertar ou acima do buraco da fechadura da porta da rua antes de sair: “I want to do everything in the world with you.”

De seguida e ainda sob o impacto da frase sentido nas batidas do meu coração, fixo um ponto, abstraindo-me do mundo, e penso em dois corpos falantes. Quero dizer num diálogo entre órgãos, ossos e membros do corpo humano que dizem coisas a outros órgãos, ossos e membros de um corpo cúmplice e desejado. Acolho esta ideia como uma associação livre, inconsciente e tardia, qual homenagem, ao início do filme: Le Mepris de Jean-Luc Godard em que (Camille) Brigitte Bardot pergunta ao seu marido Paul (Michel Piccoli) o que é gosta nela e ele responde percorrendo as partes do seu corpo que gosta. A alta velocidade já estou dentro do meu corpo que se cruzou sem encontro marcado com outro corpo numa praça da cidade favorita de ambas as pessoas. A saber: Marraquexe. Desse acaso ou encontro predestinado, a decisão é sua caro/a leitor/a, ocorreu o seguinte diálogo:

Boca de A - O meu corpo está interessado em falar com o teu umbigo...

Boca de B – Sou todo umbigo.

Umbigo de A – Falar quer dizer ouvir primeiro o que o teu umbigo tem para me dizer para depois reagir...

Umbigo de B - Estou disposto a ser visitado por um cotonete...

Fígado de A – A sério? É mesmo isso que ele tem para dizer...

Umbigo de B – Lá estás tu com o teu mau fígado. Sim, ele precisa de se sentir limpo para voltar a desbloquear este centro energético. Já não me olho ao espelho desde a semana passada. E isso não é bom sinal. E isto nada tem que ver com auto-centramentos improdutivos. Quero ligar-me ao teu corpo de forma umbilical, mas numa dimensão fora da maternidade.

Córtex cerebral de A – Nem vou comentar... Adiante que eu adoro limpar cavidades, sobretudo umbigos. Se pudesse seria limpa-umbigos!

Umbigo de B – Então aproveita...

Mão esquerda de A (com o indicador em riste) – Mal posso esperar... posso?

Mão direita de A (sobrepondo-se) - Tengo, tengo, tengo… Tú no tienes nada…

Olhos de B – Desculpa…

Coração de A – Relaxa…

Coração de B – Para quê, se nem me faço ouvir? Estou a bater tão certinho...

Mão direita de A – Eu, se pudesse, escolheria outro destino do teu corpo...

Orelha esquerda de B – Agora? Estranho, acabei de ouvir o teu ombro a dizer: beija-me…

Boca de A – Mas quem é que te disse que não sou capaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo.

Fígado de B – És tão... és imenso...

Estômago de A – Não me ouves... Estooooouuuuu com foooome!

Pé direito de A para o pé direito de B - E o teu tornozelo?

Pé direito de B para o direito de A – Com a confusão que vai lá para cima não te consigo ouvir... falamos amanhã, preciso de uma meia quente e de umas Crocs com pêlo de borrego... Tenho sentido muito o chão.

Pé direito de A para o pé direito de B – Tu e os teus acessos de conforto e design ergonómico germânico...

Cóxis de B – Já fazias um bocadinho de yoga, não?

Vagina de A (atabalhoada) – Assim, não vais lá...

Pénis de B (sorumbático) – O melhor é ir fazer xixi e cama... Ele não anda a dormir bem.

Boca de A – És sempre a mesma coisa... Não sejas tão intempestiva!

Corpo de B (põe-se em movimento) - Lol.

Cérebro de A (em modo devaneio) – Quero-te tanto... Se tu soubesses!

Mão direita de B – Dá-me a tua mão!

Mão direita de A – Dada!

Olhos de B (a brilhar) – Gosto das tuas mãos.

Pénis de A (cogitando) – Vai ser tão bom! Vá, mas agora acalma-te! Menos!

Vagina de B (cogitando) – Estou a adorar este passeio!

 

To be continued...

Este texto é uma versão reescrita e aumentada de uma crónica publicada na edição nr. 15 da revista Migalhas – cultura à mesa (Junho de 2011).

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