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Por entre as teias dos seus desenhos desvenda-se uma série de relações com a literatura, com o cinema de expressionismo alemão e com as sombras que dele fazem parte. Personagens fin de siécle dotadas de expressões enigmáticas, sedutoras e obscuras. Oriundas do mundo dos contos, da dança e até mesmo de retratos perdidos em álbums fotográficos que renascem dos estranhos poderes da tinta-da-china e ganham vida num papel esquisso que nos penetra o olhar e a alma.

O teu trabalho está muito ligado à literatura e ao cinema, e quando olho para as imagens penso em personagens extraídas de contos. Nunca pensaste em fazer um livro só com as tuas personagens, como se criasses uma história?

Sim, tenho algumas ideias e talvez no futuro o faça. Gostava realmente de ter um livro só com as personagens todas que eu já criei misturadas e aí cada uma fazia a sua história em vez de ser eu a impôr uma. As figuras que eu retrato ganham vida própria, têm as suas próprias emoções e histórias e eu sou apenas um meio para lhes dar “vida”.

Os teus desenhos fazem uma espécie de interacção com o público porque os olhares são tão penetrantes e intensos que chegam a provocar uma confrontação inquietante. É este o teu objectivo?

Sim, é exactamente esse o meu objectivo. Se há um encontro entre o espectador e a personagem que eu criei e se tu sentes que há esse encontro fico muito contente e sinto que consegui fazer o que queria porque não é um encontro fácil. O meu trabalho é de extremos, ou as pessoas adoram ou odeiam e eu percebo isso muito bem porque muitas vezes não queres ser confrontado com esse tipo de olhar. Muitas vezes é uma personagem que tu olhas e tem várias caras dentro dela e começas a pensar num lado mais psicológico, no que aquela personagem sofreu ou começas a pensar em ti própria e é esse encontro que me interessa provocar.

Onde encontras as imagens?

Eu trabalho a partir de séries e todas elas estão ligadas a coisas diferentes. Primeiro comecei a trabalhar com imagens que tinham a ver com a dança, usei muitos bailarinos da Pina Baush e depois entrei para o mundo do cinema, das actrizes e actores, mas também já usei imagens que encontrei na feira da ladra, fotografias antigas ou mesmo na Internet. Depois há séries específicas que têm a ver com conjuntos de imagens que eu vou roubar a um livro ou filme.

E o que é que te fascina no cinema do expressionismo alemão que tanto imprimes nos teus trabalhos?

Acho que está particularmente ligado a uma série que fiz há dois anos chamada A Madrugada de Wilhelm e Leopoldine. Na altura estava muito interessada no expressionismo alemão, acho que sempre me impressionou. Vi o Metropolis quando era muito pequena e todo aquele universo das sombras e o exagero do preto e branco levado ao extremo sempre me atraiu muito.

Em algumas também vejo Visconti.

Sim, também tenho um grande fascínio pelo Séc XIX mas também por muitos outros.

Como Murnau por exemplo?

Sim, principalmente na série Der Traumdeuter que fiz enquanto estive a fazer a minha residência na Künstlerhaus Bethanien, em Berlim. Já conhecia muitos filmes de Murnau, mas nunca tinha visto o Fausto e fiquei mesmo fascinada com o filme. É fantástico também para perceberes um pouco a alma dos alemães. Em toda esta série do Traumdeuter, que significa desvendador de sonhos, baseei-me imenso em histórias do tempo do romantismo e histórias de encantar. Tem a ver com a dúvida, - porque sempre que começas a duvidar acontece uma série de calamidades - e com o lado da alma negra dos alemães. Quis também fazer um trabalho que tivesse a ver com o espaço onde eu estava, o Bethanien que era um antigo hospital, e com uma série de contos que eu li e com o ambiente do cinema alemão do princípio do século.

E o teu imaginário do grotesco e das figuras malditas, também vem do cinema?

Não sei se vem do cinema, acho que é um fascínio- não sei se existe esta palavra - escorpiónico, que é o meu signo. Acho que vemos sempre o lado negro e mais difícil das coisas, e vem da minha maneira de ser desde sempre. É uma tentativa de redimir personagens malditas. Muitas vezes tento fazer isso com os meus desenhos. Lembro-me particularmente do desenho que fiz da Gena Rowlands, quando ela ainda era uma starlet, antes de ser famosa por causa do John Cassavetes. Nesse desenho consegui atribuir-lhe uma insegurança que lhe deu um ar muito mais humano. Também acho que o papel esquisso que eu continuo a utilizar ajuda muito porque é um papel muito resistente mas no fundo é um papel frágil. O que mais uma vez não faz muito sentido (risos). Mas é verdade, é frágil porque precisa de ser muito bem tratado e conservado.

Porque é que não adoptas mais frequentemente o papel glassine, que a meu ver está muito relacionado com o teu trabalho?

Bom, já o usei num dos trabalhos que esteve exposto na Vera Cortês. É um papel de álbum de fotografias antigo. É mais difícil de trabalhar, porque a tinta passa e é uma forma de desenhar bastante diferente, mas gosto de materiais, personagens e pessoas que são um problema. Eu tento fingir que não, mas sou mesmo assim.

A própria textura do papel é interessante, parece teia de aranha e imprime um ar mais dramático à personagem.

Pois, esse desenho também é particular, chama-se A Namorada e foi baseado numa personagem que foi importante para um familiar meu. Descobri-a num álbum de fotografias do meu avô e eu achei que fazia todo o sentido retratá-la no papel que estava a separá-la, e ainda por cima é um papel que dura para sempre. É um desenho um bocado estranho e o papel tem um ar ainda mais fantasmagórico.

E já pensaste em trabalhar noutro material que não a tinta-da-china?

Sim, talvez vá pelo caminho da cor, talvez não, mas não vejo que seja obrigatório mudar a técnica, porque eu gosto muito do preto e branco. Acho que está mais associado à memória e aos sonhos e logo mais associado ao meu trabalho.

Já sei que vou fazer uma pergunta difícil, mas qual é a série com a qual criaste uma ligação mais afectiva?

Tenho alguns filhos que me dizem mais. Há umas séries que foram muito importantes para mim, como a minha primeira exposição individual na Galeria Presença chamada Cartola, que estava muito bem conseguida. Gosto particularmente da montagem que fiz no Museu de Arte Sacra na Madeira com a série Copycat, e gosto imenso da instalação que fiz para uma exposição colectiva no Mosteiro de Alcobaça. Essa série é de tal maneira preferida que não a quis vender. É uma instalação com 15 desenhos da personagem Rachel do filme Blade Runner. Quando cheguei ao Bethanien vi que o meu atelier era tão grande que levei a Rachel comigo e instalei-a na parede.

Já alguma vez compararam o teu trabalho ao do teu pai, Jorge Molder?

Sim, mas às vezes as pessoas têm muita vergonha de comparar e acho que não há problema nenhum.

E o que sentes quando fazem a comparação?

Sinto que o trabalho é muito diferente, mas que temos gostos muito parecidos. É normal, eu aprendi imensas coisas com ele, fui assistente dele e desde pequena que o via a fotografar e a imprimir. Sempre trocámos imensa informação.

Fala-me da tua experiência por Nova Iorque e Budapeste.

Nova Iorque foi mais uma experiência como turista, mas fiquei completamente fascinada, quase que me senti em casa. Acho que acontece com quase toda a gente, porque passámos a nossa vida a ver filmes e identificamos tudo. Senti-me muito livre. E em Budapeste, tenho uma história familiar, o meu avô era húngaro e foi fantástico. Fui convidada para uma residência da Câmara de Lisboa, em que há um intercâmbio de artistas entre Lisboa e Budapeste. Depois fiz uma ligação entre o meu bem-estar nessas duas cidades de formas diferentes.

Como é que surge Berlim na tua vida?

A primeira vez que fui a Berlim foi em 1999, voltei em 2003 e gostei ainda mais da cidade. Tinha alguns amigos lá, alemães e portugueses. Nessa altura fui com o Noé Sendas e fomos visitar o Bethanien, fiquei apaixonada pelo local e disse a mim mesma que tinha que conseguir uma residência naquele espaço com ateliers de 100m2 no meio de um jardim. Comecei a concorrer, não consegui, entretanto comecei a trabalhar com uma galeria de desenho em Berlim e decidi mudar-me para lá. Finalmente ganhei o Bethanien e foi uma experiência fantástica.

E como é que os alemães vêem o teu trabalho?

Os alemães são muito engraçados porque... são lentos. Nós ficamos excitadíssimos com as coisas e queremos comprá-las e tê-las. Eles não. Gostam do trabalho mas primeiro querem ver se consegues manter o que estás a prometer. Se vais ficar lá a viver, se o trabalho vai continuar a ser bom. O esforço que fiz nestes dois anos em que estou lá a morar está a ser agora recompensado. Finalmente vou entrar para uma colecção alemã de desenho, a Kupferstichkabinett, que é uma das melhores do mundo. Eles já tinham visto o meu trabalho em 2006. Têm uma comissão que vai ver trabalhos ao Bethanien e escolhem 15 artistas para comprarem. Fui uma das artistas escolhidas, o que é óptimo. Eles são reservados, mas se gostam e se querem apostar, é de forma séria.

E consegues viver só do desenho?

Sim. É óbvio que como todos os artistas que trabalham em Berlim, o meu dinheiro vem de Portugal com as vendas que faço com a Agência de Arte Vera Cortês e com a Galeria Presença, e com outras coisas que vou fazendo.

O que sentes quando vendes um trabalho?

Depende do trabalho. Às vezes o meu bébé vai-se embora, outras vezes é um alívio. Se é um coleccionador que já está a comprar o meu trabalho há algum tempo fico muito contente. As pessoas que gostam do meu trabalho e que compram são sempre muito simpáticas, dão-me os parabéns e ficam mesmo contentes por comprarem o desenho. O meu trabalho tem mais sucesso com pessoas que querem relacionar-se com o desenho, do que os que compram por investimento.

Estás a pensar voltar para Portugal?

Não, mas adoro Portugal. Não posso perder o contacto com o meu país, porque os coleccionadores portugueses continuam a ser o meu grande apoio. Estou a adorar estar a viver em Berlim, não é uma cidade bonita mas sinto-me muito bem.

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