BANDA DESENHADA

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Je suis Angou

Como foi o Festival de BD de Angoulême deste ano? Fatigante! Mas não é sempre? Sim mas este ano com a paranóia oficial do Charlie Hebdo a percorrer o evento, foi mais pesado do que o habitual. De 29 de Janeiro a 1 de Fevereiro lá aconteceu este gigantesco acontecimento de BD em França cheio de livros e artigos similares, encontros com autores, exposições de originais pela 42ª vez, cristalizado na sua forma desde a criação da “Cidade da BD” há uns 5 anos, e incluindo as estruturas independentes do ano passado – a saber, um alfarrábio e a Galeria Glénat na Rua Hergé, e o festival “off” no clube Moon.

A parede                 

Este ano devido ao massacre de 7 de Janeiro da redacção do jornal satírico Charlie Hebdo, a segurança das tendas e locais de exposição era um misto de porteiro de discoteca e segurança de aeroporto, fazendo as esperas e filas de entrada um verdadeiro inferno especialmente no Sábado – é verdade que sempre houve filas no festival mas desta vez bateu-se os recordes. Para perder menos tempo, qualquer vontade de visitar algo obrigava sempre a pensar “é melhor não levar a mochila” ou “não tenho moedas ou isqueiro nos bolsos, certo?”

O eterno problema de como expor pranchas originais de BD veio mais uma vez  à tona e com diferentes matizes. A pior situação sem dúvida foi a do mestre japonês Jiro Taniguchi – autor inesperadamente publicado em Portugal: O Homem que caminha (Devir / Panini; 2005) – cujas suas pranchas perfeitas e imaculadas deixam-nos tantas vezes na dúvida se o que via eram originais ou impressões. Mas por isso mesmo deixa-nos um vazio tal o desinteresse plástico da sua obra, um problema que habitualmente cerca a BD quando se expõe na parede. Se é verdade que as suas histórias “zen urbano” cativam milhares de leitores – até mais na Europa que no Japão, diga-se – graficamente o seu misto de “linha clara” com o “estilo Manga” apesar de ser interessante também é facilmente esquecível em grande parte devido aos clichés assépticos do estilo “Manga” – termo que significa para muitos de “BD japonesa” mas tem de ser pensada como antes como um termo popular como é reconhecida a produção industrial de BD japonesa.

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O inverso total e o que mereceu ir a Angoulême – embora o autor já teve uma exposição no Salão Lisboa 2000 – foi a exposição de Alex Barbier, um francês “decadentista” na linha de Céline e Burroughs e um dos pioneiros da pintura na BD, publicado graças a Wolinski (uma das vítimas da Charlie Hebdo) quando era editor na melhor fase da revista Charlie Mensuel nos meados dos anos 70. Plasticamente é como um Bacon em série, com corpos submissos e deformados, sexo a escorrer da tinta e ambientes a libertarem metano a rodos. É uma obra para leitores maduros que consigam engolir a seco as suas pinturas e pranchas – algumas delas semi-destruídas por um fogo criminoso nos anos 80 mas que lhe davam ainda um toque de estranheza maior.

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Outra exposição bem conseguida – e admito que sou um fã incondicional – foi a dos Moomins. Sim aquelas criaturas que se parecem com hipopótamos, criação da finlandesa Tove Jansson (1914-2001) para um jornal britânico, e que ao longo dos anos tornou-se num ícone da Finlândia, ao ponto de ser a primeira coisa que uma pessoa vê quando chega ao aeroporto de Helsínquia. É uma BD para todo público, daquelas “clássicas” criada em 1954 mas completamente legível em 2015, cheia de humanidade que concorre directamente com os Peanuts e pessoalmente acho que os ultrapassa em talento gráfico e narrativo para além de ser uma delícia de emoções, uma adorável anarquia de sentimentos (que muitas vezes choca dada aos estranhos comportamentos das personagens), enfim, uma Ode à Liberdade que consegue atravessar o tempo que for necessário para ser reconhecido o seu génio. Ganhou o Prémio Patrimonial em Angoulême 2008 e passado sete anos finalmente teve direito a esta magnifica exposição. As pranchas das tiras diárias bem como as ilustrações de Jansson são de uma beleza gráfica ímpar – já deveriam saber pois estavam umas poucas ilustrações dela no Palácio Galveias em 2008 na exposição Truth or Tales. Facto importante, transmitido a mim pelo jornalista Harri Römpöti, ao que parece para esta exposição em Angoulême, muitas das peças vieram na companhia comercial que explora os Moomins e não do seu museu de Tampere que cedeu muito do seu acervo para uma outra grande exposição no Japão. O que significa que muitas das “coisas” que estavam em Angoulême nunca tinham sido mostradas nem mesmo na Finlândia. De carro, Lisboa a Angoulême são apenas 14 horas de viagem, vale bem a pena ir ao Museu da BD porque a exposição está lá até 4 de Outubro deste ano. A sério!

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A exposição do Jack Kirby (1917-1994) eram reproduções e ampliações dos seus originais. Um desgosto para quem gostaria de ver “the real McCoy”... convenhamos, foi um bocado p'rá treta. Ao contrario a do Calvin & Hobbes de Bill Watterson que tinha muitos originais e bem documentada, o mais provável é voltarmos a ver na BD Amadora deste ano, tal como aconteceu o ano passado com a da “Mafalda”. De referir ainda as exposições do L’Employé du Moi, um colectivo editorial de Bruxelas que já esteve no Salão Lisboa 2001- fazendo um objecto especial para o evento, um CD de música, hoje verdadeira peça de colecção! A exposição era divertida e introspectiva pois comemoravam os seus “sweet 15” num aniversário ao inverso porque os aniversariantes é que ofereceram uma bela prenda, uma antologia de BD bem “cool” em que os autores fizeram BDs a recordar quando tinham essa idade. No  F.O.F.F., o evento “off” do festival, era de admirar as gigantes pinturas de Martes Bathory, cheias de cor e pornografia underground – ou seja, programação mesmo “fuck off”! E convém relatar isto, é que o Festival de Angoulême institucionalizou a ideia “off” – geralmente com exposições de BD cristãs em igrejas – e convém demarcar que o F.O.F.F. é que é o verdadeiro “off”, tenham lá paciência.

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Mas não é só de BDs cretinas (já repararam que é fácil confundir “cristão” com “cretino” em francês?) que vive o “off oficial”, também há “a Esquerda” geralmente num sitio obrigatório a espreitar – nunca se sabe o que se pode encontrar – que é a Casa da Paz e do Povo. Este ano tinham algumas exposições interessantes mas a melhor era uma documental sobre “a construção do herói e a biografia de Ernesto Che Guevara através do estudo de vinhetas de 28 BDs “ dedicado ao revolucionário da tese de Camille Pouzol.

A Internacional

Mudando de assunto, uma coisa que Angoulême mete respeito é que o Festival não tem medo de assumir que o melhor que tem para apresentar é “estrangeiro” e/ou não-francófono. Talvez num ano ou outro haja uma necessidade de premiar a “prata da casa” mas tal como no ano passado o prémio principal – e que remete o autor para Presidente do Festival no ano seguinte – foi para o americano Bill Watterson, este ano, o prémio foi para Katsuhiro Otomo.

Apesar de tudo será o primeiro autor japonês a receber este prémio confirmando o estatuto de Otomo como seminal. Foi ele que esteve na linha de frente para a Manga e o Anime (desenhos animados japoneses) invadirem de vez e assentarem poiso nos mercado ocidentais (Europa e Américas). Não querendo esquecer o Tezuka ou algumas séries de TV populares do passado que já colocavam as crianças dos anos 70 e 80 obcecadas com o imaginário nipónico, foi Akira – até em Portugal foi editado em 19 volumes pela Meribérica/Liber!!! – que soltou a histeria total pelo Manga e Anime. O prémio é carregado de  simbologia...

Quem tem estado a ler este texto, mesmo que na diagonal, já percebeu que este ano as grandes exposições foram dos EUA (Calvin & Hobbes e Jack Kirby), Japão (Jiro Tanigushi), Finlândia (Moomins),... já para não falar nas tendas dedicadas à China e Ásia em geral. Questiono se esta situação é uma forma de agradar os mercados globais ou se há uma crise no mercado francófono? É incontornável que se perceba que os “melhores do mundo” da BD não são foram ou são só produzidas nos EUA ou na França. Os Moomins são um exemplo disso, ou como os nossos Rafael Bordalo Pinheiro e Carlos Botelho, ou Poema a fumetti de Dino Buzzati, num exemplo lembrado à toa. É natural que a Aldeia Global tenha trazido a descoberta de situações para além do “franco-centrismo” mas também é verdade que na França após os “loucos anos 90” se sente algum abrandamento na “vanguarda”. Por exemplo, nos últimos anos visitar o stand da L’Association é de bocegar à grande, parece que pararam no tempo e amoleceram frente à vaga que eles próprios criaram. Só olhando o grafismo dos seus livros parece que ficaram em 1997. Excitações livreiras estão nos “bastardinhos” contemporâneos como a Hoochie Coochie, Ça et La e até na 5éme Couche que também tem vícios francófonos mas que pelo menos tem feito alguma escandaleira nos últimos anos – o caso Katz e os Estroumpfes Negros (do ano passado). Este ano vendiam a versão em lingala (língua oficial do Congo) do Tintim no Congo, álbum medíocre de Hergé que tresanda de colonialismo e nunca antes traduzido para a língua dos “insultados”. Sem saber-se quem fez esta versão - Tintin Akei Kongo – ou quem a editou (o álbum nas mesas da 5éme Couche, da L’Association como ainda da única editora portuguesa presente, a Chili Com Carne), a edição é pirata, sem o consentimento legal da editora Casterman ou da Fundação Moulisart, verdadeiros tarados do controlo “copyright” sobre a obra de Hergé. O livro reproduz na integra a BD na sua versão de 1946, a única “diferença” é a tradução para lingala. Um trabalho de arte conceptual, pouco habitual no mundo da BD e que ainda dará que falar no futuro.

A Marselhesa

E enquanto o “Tintim” não faz barulho, todo o festival foi isso: barulho pela Liberdade de Expressão, pós-trauma 7/1... Sem medos improvisaram uma exposição bibliográfica sobre a “Charlie” – dos seus inícios Hebdo Hara-Kiri, passando pela Charlie Mensuel até à Charlie Hebdo – no Museu da BD, onde geralmente encontra-se em exposição peças do acervo do Museu que contam a História da BD. Não houve tempo para fazer uma exposição com originais mas o simples facto de ver as colecção completas destas publicações polémicas e de referencia e importantes para uma amadurecimento da BD como no caso da Charlie Mensuel (onde passou Topor, Guido Buzzelli, Alex Barbier,...) era o suficiente! Lá está, melhor que ver pranchas originais que nos esquecemos passados poucos minutos. O ambiente da sala era pesado devido a memória do massacre como fotografias e vídeos dos autores mortos... mas uma gargalhada ou outra soltava-se no público, impossível de conter porque esta malta sempre mandou e ainda manda à merda quem quer que seja. Outra interpretação possível ao ver os os objectos editoriais era a história da França (e de algum Ocidente) que se via pelas capas e páginas destas revistas, dos seus cartoons mas também de fotografias, fotonovelas, montagens fotográficas, BDs, textos,...

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E o Festival criou o Prémio Charlie Hebdo para a Liberdade de Expressão, atribuído neste “ano zero” aos cinco autores assassinados: Charb, Wolinski, Cabu, Tignous e Honoré. Apesar de que no passado, Angoulême ter tido cartonistas politicos, em especial esta Geração do Maio de 68 como o Wolinsky e Willem (no ano passado), este foi o ano que a contestação politica esteve presente, não só nos casos já apresentados aqui mas também por outros episódios, três a registar.

O prémio Charlie foi recebido por Jean-Christophe Menu – fundador da L’Association e presidente da Associação Amigos da Charlie Hebdo – que não teve pejo em chamar o Presidente da Câmara de Angoulême de idiota por ter criado gaiolas nos bancos públicos da cidade com o objectivo de impedir dos sem-abrigo de dormirem neles.

Continuando com os prémios, o Prémio de Melhor Álbum foi para atribuído ao descendente árabe Riad Sattouf e o seu livro L’Arab du futur (Allary; 2014), uma autobiografia do autor que na sua infância e puberdade viveu na Líbia e na Síria, antes de se mudar para França. Curiosamente o autor já tinha ganho o mesmo prémio em 2010, um dos poucos casos em que um autor recebe duas vezes o prémio de melhor álbum – creio que só Art Spiegelman é conseguiu isso com os dois volumes de Maus. Não conhecendo o seu trabalho é fácil entrar no cinismo que o prémio foi politico ou simbólico, uma espécie de “olha que um árabe pode ser alguém em França sem andar aí aos tiros”.

Por fim, Sábado foi marcado por uma manifestação pelos profissionais da BD contra a situação de precariedade da profissão, em especial ao facto de que a RAAP – uma espécie de caixa de previdência dos autores franceses – querer aumentar uma taxa aos seus sócios. Mais de 500 profissionais marcharam pelas ruas de Angoulême, sempre com um espírito divertido e menos de partir as gaiolas dos bancos, por exemplo. Nem podiam, estavam bem protegidos de policia, outro elemento omnipresente em Angoulême este ano...

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