Fotografias: Joana Pires.
3. Olho Cortado
Pessoalmente, um dos grandes motivos para ir a Angoulême este ano era ver o autor japonês Suehiro Maruo ao vivo. Tentei há muitos anos, trazê-lo a Lisboa mas os autores japoneses são complicados e caros de convidar para o Ocidente. Falamos de custos de viagem, estadia, alimentação e acompanhamento 24h de alguém amigo (não gostam de viajar sozinhos) ou de um tradutor (por razões óbvias). São também viciados no trabalho, e para viajarem têm de ter mesmo bons motivos profissionais. O que quer no caso de Maruo quer de Atsushi Kaneko a ida Angoulême era mais do que justificada porque foram editados recentemente livros de ambos, quer em pequenas editoras como a Le Lezárd Noire quer pela grande Casterman – que se calhar até foi quem pagou a viagem, não?
Juntos participaram numa conversa no Espaço Franquin, Sexta-Feira de manhã, com uma sala cheia de interessados. Como é habitual nos franceses, estes fizeram montes de perguntas pseudo-intelectuais, especialmente a Maruo porque este é o mestre vivo do género “Ero Guro” na BD.
O “Ero Guro” é um estilo artístico e literário japonês que surgiu nos anos 20 e 30 do século XX e que explora o grotesco, o ridículo e o desvio sexual, cuja a figura maior será Edogawa Ranpo (1894–1965), um escritor que usava este pseudónimo verdadeira corruptela fonética de Edgar Allan Poe, e que Maruo já várias vezes adaptou para BD. Maruo é mais conhecido no mundo talvez pelas suas capas para Naked City mas quem cruza com as suas BDs não se esquece delas, sobretudo dos olhos a saírem das caveiras que são lambidos pelas línguas dos seus assassinos/violadores. O Cão Andaluz é uma outra influência assumida por Maruo nessa simpática conversa, tal como História do Olho de Georges Bataille.
Kaneyo é um autor mais novo que Maruo, influenciado pelo próprio mas que tem uma abordagem mais Rock e Pop pelo menos visualmente porque não conheço a sua obra – peço desculpa mas os orçamentos são sempre limitados para 10 000 metros quadrados de possíveis compras de BD. Um dia digo-vos algo sobre ele! Mas os japoneses não vivem só de sangue e tripas, e em Angoulême para quem quisesse ver algo diferente em geral e daquele país em específico deveria ir ao “submundo” da coisa! Como já escrevi, existe a programação oficial e depois há o “off”, ou seja iniciativas privadas que aproveitam o festival (e o festival divulga-as) para fazer uma outra programação que tanto pode ser uma simpática exposição de Étienne Davodeau (nunca leram o Alguns dias com um mentiroso?) na Casa dos Povos e da Paz (um centro cultural de Esquerda) como infelizmente também temos as associações cristãs e as suas exposições nas igrejas…
E depois ainda há o FOFF, criado em 2010 como Angoumerde Fuck Off pelo Le Dernier Cri, que entretanto adocicou o nome e tornou-se MESMO num evento “off” onde alberga os editores “selvagens” que não querem ir para a tenda dos alternativos. Este ano ofereceram algumas exposições (já lá irei) entre elas, uma de Yuichi Yokoyama, sem dúvida um dos autores mais excitantes nos últimos anos. Dizem que não há género para comparar com Yokoyama e é bem capaz de ser verdade. Descoberto no Ocidente pelas edições Matière que já publicaram seis livros seus, todos eles sem palavras e a preto e branco, excepto o novo Baby Boom em que usa uma complexa selecção de cores de canetas de feltro para desenhar. Procurem os seus livros, o que não será difícil paradoxalmente para um autor que nunca usa palavras, o que não faltam são edições ocidentais dos seus livros… Talvez fosse a exposição mais “pacífica” deste ano, uma vez que o sangue parecia ser a ordem dos dias nas exposições de Angoulême. Têm coragem de me acompanhar?