Fotografias: Joana Pires.
2. Pés Mortos
Se na primeira parte desta reportagem conseguiram imaginar o espaço que a BD ocupa nos dias do Festival de Angoulême, chegou a hora de perceber o que se passa por lá...
Ver tudo é impossível, ponto final. A Quinta e Sexta-Feira são os dias mais calmos, e os melhores para se verem as coisas com calma e sem multidões porque quando chega Sábado temos uma invasão de público enorme, que ocupa a cidade toda e muitas vezes para juntar à histeria ainda alguém se lembra de convocar uma manifestação política ou um encontro de motards, ou os dois juntos! Enfim, como diz a expressão francesa: un bordel!
Depois, é o folclore “kitsch” e deprimente que faz com que se respire, vomite e transpire BD 24 horas: todas as lojas, seja farmácia ou de vestidos de noivas tem um álbum do Astérix ou coisa parecida na montra, montam-se quiosques com promoções a BD's comerciais, oferecem-se números gratuitos de revistas de BD (como a Zoo), os putos andam sempre com uma máscara ou chapéu de uma personagem qualquer de BD (já vi de Spirou mas este ano eram os “Legendaires”, um fenómeno comercial francês qualquer que felizmente não conheço nem quero),… Ah! E os restaurantes aumentam os preços na Sexta e Sábado mesmo à sacana!
Quem estiver a ler, já deve pensar que odeio aquilo mas não. Angoulême é um terreno sem consenso e um espaço de eclectismo à força mas a verdade é aí que reside a sua importância e força. Convenhamos, está lá toda a gente ligada à BD, seja do tipo parva-comercial à mais artística (na falta de melhor termo), e isto resulta não por uma opção de programação, porque até há festivais de BD orientados para arte – como foi o saudoso Salão Lisboa ou actualmente o Fumetto (na Suíça), Bastia (Córsega) ou o Komikaze, em Ravena (Itália), este último dedicado à BD sobre a “realidade”.
Só que Angoulême é o “zeitgeist” da BD, para o bem e para o mal. E de mal a BD tem muito, claro, é uma arte que ainda hoje abraça com força a produção infanto-juvenil e desdenha a vanguarda, ou que “adulto” significa pornografia ou os orgasmos das mulheres desenhadas por Manara ou a violência fascista de Frank Miller. Angoulême não ostraciza nada, dá espaço para tudo numa dança macabra entre arte e comércio.
Macabra mas não ignóbil porque vai acompanhando a lenta evolução artística da BD, que muito tem mudado nos últimos 20 anos. Talvez seja necessário ir ao Fuck Off para ver as propostas mais marginais ou as novas tendências mas na programação oficial de Angoulême já se comemoraram os 10 anos da L’Association ou se mostrou os incríveis resultados do projecto Match de Catch à Vielsam, que juntava os artistas pedantes da Fremok e deficientes mentais. É raro, para quem é do meio, Angoulême impressionar. Este sentimento blasé não é obrigatório para todos, claro está, e será impossível não se ver coisas interessantes nas exposições e claro comprar (comprar mesmo muito) bons livros de BD.
Para isso é preciso andar muito de um lado para o outro. É preciso ser estratega para racionalizar a “falta de tempo + km de material para ver + trânsito humano”. É preciso seleccionar e racionalizar se queremos mesmo ver certas exposições ou ir a tendas onde se vende super-heróis e mais um novo Blake & Mortimer. Ainda assim, aconselho ver de tudo um pouco só para sentir a atmosfera de “loucura” única que passa por aqui – e no fim acabar por perceber que não vale a pena perder tempo, por exemplo, na tenda das grandes editoras nas próximas visitas com milhares de maluquinhos carregados de álbuns de BD para sacarem assinaturas e desenhos dos autores.
Resta dizer ainda que existem autocarros gratuitos durante o Festival que circulam na cidade para levar do centro à parte mais periférica e baixa da cidade. Ainda assim os pés no final do dia ressentem-se e perguntam: estas bolhas são por causa da BD!?