Imagens: Acédia / Chili Com Carne.
A dedo. Trabalhar as manchas, objectos nebulosos, objectos tormentosos de combinações entre o escuro e as diferentes densidades do escuro. Um tempo suspenso, uma geografia indefinida. De quando em vez um vulto, um objecto do quotidiano como referência. Referências longínquas a remeter para situações de impasse. A dedo palmilhando caminhos paralelos, universos indecifráveis. A dedo na alma.
São poucos os autores com a capacidade de criar um universo tão próprio e tão próximo que aliada às temáticas que aborda, adensa-as e aprofunda-as com uma capacidade de desenho ímpar. André Coelho é nome a reter. A propósito do seu mais recente trabalho Acédia, editado pela Associação Chili Com Carne, no âmbito do concurso 500 Paus, decidimos não só falar com o André, mas também com o Marcos Farrajota (Chili Com Carne). Conhecer melhor a obra do primeiro e Acédia em particular, e determinar a importância deste tipo de concursos na produção de obras no campo da ilustração / banda desenhada de forte cunho autoral.
–
• André Coelho
No teu trabalho anterior com o Manuel João Neto, Terminal Tower, ficaste unicamente responsável pelo desenho. Desta vez partiste também para o argumento. Porquê esta decisão e quais as principais diferenças entre uma e outra?
O processo de trabalho no Terminal Tower não foi tão claro e linear que possa ser reduzido ao binómio “Manuel Neto – argumento / André Coelho – desenho”. Tratou-se de um exercício colaborativo em que o decorrer da construcção da narrativa assentou em avanços e recuos, em sugestões visuais ou textuais mútuas até obtermos aquele que foi o resultado final. Em determinadas situações a justaposição e sequência das imagens ou direcção narrativa era decidida em conjunto com o Manuel, que por sua vez também elaborava directizes para a minha própria abordagem plástica em momentos específicos. Daí, posso afirmar que o livro é um trabalho colaborativo num sentido mais profundo do que aquele que seria se tivemos partido de uma divisão clara e estanque de tarefas. E o resultado é precisamente aquela narrativa sobre paranoia e delírio que reflete também a nossa mitologia privada.
O Acédia nasceu da ideia de criar um conjunto de pequenas narrativas, muito curtas, de cariz autobiográfico. Apesar de graficamente ter ficado bastante satisfeito com certos resultados, devido a uma falta de motivação que lentamente se foi instalando, esta ideia caiu por terra. Como tal, tomei a decisão de partir deste material que já tinha criado para traçar uma direcção narrativa ficcional.
A ideia de assumir o trabalho todo foi algo que não ponderei ou delineei de todo. Simplesmente aconteceu, talvez porque a própria natureza do livro assim o pedia. Existem muitos momentos em que o trabalho comunica connosco as suas próprias necessidades.
Quais as principais preocupações durante a construção do argumento? A ideia de fuga, de percepção de novas realidades parecem estar muito presentes no teu trabalho. São estes os temas que gostas de aprofundar?
André: A principal preocupação na construção do argumento, tal como na abordagem gráfica, assenta em adaptar a forma ao conteúdo, ao conceito central que se pretende transmitir. Estar a fazer banda desenhada é para mim uma linguagem cujas convenções não devem ser impositivas ao ponto de suprimir ou desvirtuar o conteúdo da obra. Seria o mesmo que pensar em pintura ou literatura como sendo estilisticamente estáticas em termos históricos.
Livros como o Terminal Tower ou o Acédia têm a sua forma específica porque servem um conteúdo ou ideias específicas. Deste modo, preocupou-me não cair em lugares comuns, em tornar a narrativa o mais plástica possível, de forma a que a linearidade não se impusesse à poética e à fusão entre os diferentes níveis de percepção.
Temática ou conceptualmente, interessam-me narrativas relacionadas com a forma como podemos mudar a percepção da nossa realidade, não só para fugir a esta, mas para a expandir. A sua descodificação e subversão não terá como objectivo uma fuga no sentido de “escapar a algo”, como se houvesse uma qualquer moral no pano de fundo. Prefiro considerar o enredo de Acédia como uma expansão.
Num sentido lato, talvez a problemática transversal a estes livros, assim como a outro que tenho em desenvolvimento, é precisamente o aborrecimento e de que forma é que podemos partir do espaço exterior e dos mecanismos empíricos e interpretativos para abrir portas para um outro espaço.
Haverá um ponto em que não saberemos quais as fronteiras entre ambos e aqui chegamos ao inner space ballardiano ou a algo semelhante à interzona do Burroughs.
Ao contrário de Terminal Tower, onde se nota de quando em vez o uso do vermelho nas suas diferentes tonalidades, Acédia é constituído exclusivamente por desenhos a preto e branco. Foi opção meramente estética? Para reforçar o carácter da história?
Devido à natureza fragmentária do Terminal Tower, sendo este composto por uma multiplicidade de abordagens plásticas como por exemplo o esboço a lápis, monotipias, colagem ou fotografia, já para não falar do que se passa em termos de construção narrativa, o uso do vermelho teve não só uma função estética, mas também utilitária na medida em que foi usado como fio condutor entre segmentos narrativos ou como traço de identidade de determinados ambientes ou personagens.
Acédia é um livro onde a ideia do delírio ou da fantasia é mais óbvia do que no Terminal e ao mesmo tempo senti que necessitava de uma separação menos evidente, de forma a que se compreenda que aos olhos da personagem principal os diferentes níveis de percepção são contínuos e fluídos. Um não é, à priori, melhor do que o outro.
Tal como expliquei, Acédia parte de um trabalho que estava a desenvolver com uma outra finalidade. Se calhar pode-se afirmar que a linha narrativa partiu de uma direcção gráfica previamente estabelecida e não o contrário, que seria o mais normativo.
No que conhecemos da tua obra nota-se um certo fascínio por temáticas relacionadas com o subconsciente e de certa maneira uma visão distópica sobre o futuro. Estamos todos lixados e não nos resta solução ou é meramente uma temática para melhor expressares as tuas preocupações estéticas?
Compreendo que a leitura que se faça dos meus livros seja rapidamente conotada com uma certa ideia de “distopia” ou de “negrume apocalíptico”, mas conceptualmente, tratam-se na sua maioria de explorações dos diferentes níveis de interacção ou percepção que estabelecemos com a realidade e consequentemente a forma como lidamos com esta.
Julgo que nunca se tratou de criar juízos de valor sobre um futuro qualquer, mas sim de explorar um presente sublimado.
A paranoia do PKE 632 de Terminal Tower é a estratégia de sobrevivência a um aparente cenário de guerra, da mesma forma que no Acédia, a aceitação dos sintomas de uma doença é para Daniel uma forma de abrir portas a uma confrontação com as suas próprias obsessões.
Esta procura por estratégias de subversão das normas da percepção, interpretação e conduta não será tanto no sentido distópico de escritores como George Orwell ou Huxley em que o futuro será terrível, mas sim no de potenciar a realidade à nossa volta. Se o cenário é o de uma guerra ou de uma doença ou de rotina e aborrecimento, então isso é porque são factores que actuam como catalisadores ou gatilhos. São fósforos em telas em branco prontas a arder.
O que representou para ti vencer o concurso 500 paus? Porque é que decidiste apresentar um trabalho já completo em vez de uma espécie de work in progress?
Era o que havia pronto e era o trabalho que sentia ter mais urgência em ver cá fora. Existe um timming para tudo. Tenho sempre vários projectos em paralelo, por vezes coisas que ainda não fazem um sentido claro, mas que por algum motivo emanam a luz de uma boa premissa e ficam a fermentar algures.
O Acédia precisava de sair já para não entrar numa lógica excessivamente revisionista e que muitas vezes termina apenas na domesticação de um certo fulgor natural das etapas primárias de qualquer trabalho. Decidi por isso apostar neste trabalho para concorrer ao 500 paus e ainda que não ganhasse, o facto de ter submetido estas páginas para uma avaliação fariam com que as visse de uma forma terminal. Adicionalmente, estamos a falar de um concurso cujo júri é constituído por pessoas cuja opinião respeito e às custas do qual se editaram alguns dos melhores trabalhos de banda desenhada dos últimos tempos, como os livros do Francisco Sousa Lobo ou o do Filipe Felizardo.
E 500 paus dão sempre jeito, porque não tentar?
Simultaneamente tens um interesse muito particular em relação à música. De que forma estes dois universos se contaminam?
Contaminam-se na medida em que ambos são materializações de um imaginário, de obsessões e referencias pessoais.
Nos meus projectos, nomeadamente os extintos Sektor 304 e a sua génese Sinter, a paranoia, paisagem tecnológica, a relação fluída entre espaços mentais e físicos, só para referir alguns, são pontos de partida para o desenvolvimento da música e são igualmente elementos comuns com o meu trabalho plástico e de banda desenhada.
–
• Marcos Farrajota
O vencedor da edição deste ano dos 500 paus foi o Acédia do André Coelho. Na nossa opinião, exercício particularmente interessante de um autor com traço vincado e reconhecível com um argumento bastante forte. Quais foram os critérios do júri para premiar esta obra?
Não temos elementos muito técnicos na selecção, cada membro avalia conforme a sua sensibilidade e gosto. Não posso falar pelos outros mas o que foi redigido publicamente foi isto: "Um livro que consegue estabelecer um equilíbrio entre experimentação e tradição na banda desenhada estabelecendo um paradoxo entre a sua energia criativa com o ambiente mórbido da narrativa"... neste caso houve também algo brutal que raramente aconteceu nos 3 anos do concurso, que foi o autor ter apresentado a obra já toda concretizada. Já tinha havido um caso assim – na primeira edição creio – mas não ganhou. Ou seja, não é um critério mas no caso do Acédia é claro que ao ter tudo feito, foi muito mais fácil de avaliar que as outras obras que ainda teriam de ser feitas, e acredito que teve impacto por isso – pelo menos para mim teve, os outros membros, não sei o que pensaram mas acredito que deve ter tido um peso inevitável...
Felipe Felizardo e Franscisco Sousa Lobo foram outros dos autores que viram os seus livros editados a partir do 500 paus. O universo de ambos remete para as questões do subconsciente. O livro do André também. É mera coincidência? Sinais do tempo? Ou uma vontade de premiar este tipo de trabalhos?
Antes demais duas correcções: o trabalho do Francisco foi vencedor de 2013, o do Felizardo (e da Dileydi Florez) foram trabalhos que não foram vencedores do concurso mas ao serem concluídos pelos autores, reconhecemos o interesse em editá-los... Subconsciente? Coincidência? Sinal dos tempos? Alguém que responda a isso... Da nossa parte o único interesse final é um trabalho artístico que achamos que seja único e que resista ao teste do tempo (lá se foi a teoria dos sinais do tempo) podendo ser livros bastante terra-a-terra por serem autobiográficos como os meus ou mais experimentais como os do Filipe ou do André Coelho...
Quais os motivos que levaram à criação do 500 paus?
Sabemos que 500 Euros não é muito dinheiro (para fazer 120 páginas, mas ninguém é obrigado a fazer romances gráficos enormes, nunca pedimos isso!) mas numa área mal paga como a BD em Portugal é um estímulo para que um autor possa parar nem que seja um mês para se concentrar para fazer um bom livro. E é uma provocação – daí o título manhoso – para confrontar a cena da BD em Portugal cheia de pseudo agentes que acham que estimulam os autores só porque escrevem uma linha ou duas em blogues, que inventam prémios da treta e afins...
Desde a primeira edição, e sendo esta a quarta, como avalias o número de propostas apresentadas e a qualidade das mesmas?
Melhor do que estávamos à espera! Tem vindo a crescer todos os anos as propostas, geralmente dentro da lógica de BD que editamos (BD artística), só um ou outro trabalho é que apareceram por erro (BD de entretenimento)... Algumas coisas são verdes mas revelam potencial, o que significa que se os autores que perderam os concursos continuarem a trabalhar poderão estar a sair obras interessantes um dia destes. E isto significa mais autores, mais livros, mais ideias, e com isso um inevitável crescimento da cena...
Há espaço para objectos híbridos, por exemplo livro + k'7 + vídeo, no âmbito do 500 Paus, ou o mesmo restringe-se unicamente ao apoio à edição em livro?
Boa! Seria fixe receber uma proposta assim!!! Sinceramente nunca tinha pensado nisso. É claro que isso teria de vir de um artista tal proposta. Estaria numa boa situação porque afinal a Chili Com Carne se há coisa que adora são híbridos caso contrário não teríamos publicado desde sempre literatura, bd, ilustração, ensaio, música – olha o caso do Futuro Primitivo que era um livro de BD com uma banda sonora, co-editada em linha com a You Are Not Stealing Records.
Houve uma festa de lançamento do Acédia, no passado dia 06 de Outubro, no Lounge com um concerto de Smell & Quim + Rasalasad Vs Shhh, mas não houve propriamente uma apresentação. Vai haver? Porque não se sentiu a necessidade de a fazer nesse dia?
Talvez venha haver alguma conversa e isso mas se não houve nesse dia é porque o espaço do Lounge não se adapta bem para conversa/apresentação, é um bar e bar significa som e copos, ponto. Além de que isso é boring, é mais fixe teres uns britânicos com os seus rabinhos brancos sem pelos a bombarem noise do que estarmos com conversas, fala-se muito neste país, faz-se pouco...
–
Acédia encontra-se à venda na BdMania, Mundo Fantasma, Letra Livre, Linha de Sombra, El Pep, Tigre de Papel. Brevemente também na Artes & Letras, Matéria Prima, Utopia, FNAC e Bertrand. E durante a 27ª edição da Amadora BD | 21 de Outubro - 06 de Novembro (banca da Chili Com Carne).
–
* Este texto não é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.