Imagens: Chili Com Carne.
O Palmeiras que fecha e outros bares que se redescobrem numa cidade cada vez mais padronizada. Refúgios? Provavelmente, mas sobretudo uma excelente oportunidade para falar com os editores de Revisão (Chili Com Carne, 2016), Joana Pires e Marcos Farrajota. Excelente, sem qualquer caráter superlativo, trabalho de pesquisa, tratamento e coerência editorial, que não só marcará o presente ano no que se refere às edições de Banda Desenhada como presta a melhor homenagem aos fascículos que saíam há 40 anos com a revista Visão, embora a esta não se limite. Longe, muito longe até, de uma celebração estéril e saudosista é momento ímpar para conhecer o universo audacioso, psicadélico, de liberdade, estética e temática, de um país que saía do breu salazarista de quase meio século.
Revisão é sobre os trabalhos de BD publicados na revista Visão. É somente celebrar os 40 anos ou há uma intenção que vai muito para além da efeméride?
É óbvio que não se limita a comemorar o 40º aniversário, porque os autores apresentados tornaram-se no paradigma dos autores de BD portugueses até aos dias de hoje, que fazem umas coisas durante um certo tempo, depois deixam de o fazer e desaparecem do mapa, isso passou a ser uma coisa normal dessas pessoas. Há exceções como aquele retrocesso mental que é o Jim del Mónaco ou produções que se dizem profissionais. Mas se se quiser fazer um trabalho que é mais intimista, um pouco mais pessoal, regularmente acontecem estas situações – faz-se um livro ou dois, participa-se durante uns tempos em antologias e revistas e depois deixam de se fazer. Aconteceu com essa geração e obviamente era importante recuperá-los. Por outro lado, há a questão do “tesouro patrimonial”, passe a pobreza da expressão, que existe e que é desconhecido e que tinha de ser recuperado. Há sem dúvida esse valor simbólico, uma vez que passaram 40 anos desde o fim da revista, mas onde se consegue estabelecer um diálogo com autores como o André Coelho, a Amanda Baeza e vários outros autores que antes deles, com 20 anos, tal como eles, fizeram coisas tão diferentes e interessantes como estes novos autores estão a fazer agora.
Como se processou todo o trabalho de pesquisa?
Atenção que inicialmente a ideia foi fazer uma espécie de best of da década. Recaiu sobre a Visão que era a revista mais importante e que tinha mais material, mas há outras fontes – o Evaristo, &Etc, o Estripador, o livro do Jorge Lima Barreto e também inéditos. Houve uma investigação da época, ver vários trabalhos à procura de mais material, só que no final, 90% do material tem origem na Visão. Em relação a essa recuperação de material houve uma pessoa em particular que nos ajudou, o Geraldes Lino, que é não só um grande colecionador, mas conhecedor de toda a gente que faz BD em Portugal, e que serviu de nosso “Relações Públicas”, uma vez que ele tinha os contactos, e foi apresentando os autores ainda vivos ou que ainda estavam contactáveis. Nesses encontros com os diferentes autores, havia os que tinham os originais bem conservados, outros com metade e os que não tinham nada e a partir daí a Joana teve que dar o litro, digitalizando diretamente das publicações e limpando aqui e acolá.
Basicamente foi isso. É uma questão de equilibrar as cores que era o mais importante, uma vez que as cores daquela altura são ditas psicadélicas. O desafio maior foi sobretudo manter as cores e penso que não ficou mal.
No texto introdutório falam do pioneirismo da Visão, em que medida assim foi? Foi motivado pelo contexto da época, pelas temáticas abordadas? E em que medida esse pioneirismo abriu novos caminhos na BD portuguesa?
Em termos internacionais não diria que é a invenção da roda. Como eles estavam influenciados pela informação europeia, sobretudo a francesa, talvez a exceção à regra tenha sido o Carlos Zíngaro que tinha o maior contacto com o underground norte-americano e todo o imaginário da Costa Oeste, no entanto e comparando com outros países da mesma altura há coisas que são realmente diferentes. Por exemplo, estou-me a lembrar da Suécia em que não acontece esta explosão do psicadelismo, esta descarga erótica, eles não tiveram uma revista igual nesta altura. É claro que na Espanha houve, na Itália também, mas é interessante constatar que em Portugal houve uma coisa atual, no espírito do tempo, especialmente saído um ano depois da ditadura. Antes já há, por exemplo, 2 ou 3 álbuns que já eram diferentes do que era normal.
O normal cá eram as revistas tipo o Mundo de Aventuras, e autores como o José Garcês, o José Ruy que faziam trabalhos que eram obrigados a fazer, pela censura, pelo Estado Novo. São direcionadas para um público infanto-juvenil, são sobretudo adaptações históricas, adaptações literárias, sobretudo a veia nacional e bem comportada, a que eram obrigados, mas que são bons no que fazem. Outro exemplo é o Fernando Bento com um estilo gráfico muito interessante. Mas estavam sempre constrangidos por essa “tabelinha”, ao passo que na Visão são coisas fora do baralho, são coisas a romper, por exemplo da ideia da história com princípio meio e fim, quadrados respeitadinhos ou não, as próprias cores serem diferentes, o facto também de serem de outras áreas como o design, artes plásticas, do cinema, da música.
As temáticas abordadas são também elas de rutura. Recordo-me das referências ao aborto, a rejeição à guerra colonial e ao sistema educacional da época, por exemplo.
Esses temas não eram somente tratados em BD. Há essa rutura porque não havia nada desse género em banda desenhada.
Propuseram-se dar uma arrumação nova ao conteúdo. Qual o critério que esteve na base para esta organização?
Em primeiro lugar limpar o grafismo da época, uma vez que a ideia do livro não é fazer um fac-símile, em segundo lugar não é fazer disto um objeto vintage, como agora Portugal descobriu que há um vintage pop, e não era para brincar com o que foi a época – “ai que bonito esses berlicoques”, como tal obrigamo-nos a uma nova lógica de edição. Outro critério está relacionado com as questões orçamentais, o que obrigou a deslocar os cadernos a preto e branco e os a cores, daí também essa nova reordenação. Partindo daqui, tentou-se fazer sequências lógicas tendo como base uma perspetiva cronológica, de temas, de séries como a Família Slavot, também há as tentativas de juntar o máximo de material, para se ter uma perspetiva de continuidade que não se tinha quando saía a revista, uma vez que ela só teve 12 números. Através da revista não se tem uma noção de continuidade do trabalho do Carlos Zíngaro, por exemplo. As coisas ficaram muito mais ordenadas mentalmente, para perceber também a evolução do próprio autor e dos seus trabalhos.
Um dos aspetos que sobressai neste trabalho é a qualidade do desenho da capa. Convidar o João Maio Pinto para a fazer insere-se nesta ideia de transpor o imaginário da década de 70 para os nossos dias?
A capa tem uma história engraçada. Foi rejeitada, na altura, pela própria revista Visão. Quando fomos falar com a Isabel Lobinho e ela mostrou-nos aquele desenho, pensámos logo – esta vai ser a capa do livro. Não podia haver maior bónus do que este, ou seja tens uma capa da altura, inédita que agora podes recuperar. Se havia alguém que poderia trabalhar esta estética dos anos setenta, não só o desenho como o logótipo teria que ser forçosamente o João Maio Pinto.
A Revisão insere-se na coleção Mercantologia. Qual o âmbito da Mercantologia?
É uma coleção da Chili Com Carne cujo primeiro número surge quando o zero e o um da Mesinha de Cabeceira esgotaram. Fizemos uma compilação desses números para ter as BD’s vivas, acessíveis e anos mais tarde recuperei esse título, que só tinha saído uma vez na Chili Com Carne, justamente para recuperar as BD’s perdidas no mundo das fanzines. Transformar em livro publicações com características marcadamente efémeras, por exemplo fotocopiadas que se perdem facilmente, para além de ter um conjunto de trabalhos muito interessantes que merecem ser editados em livro.
Há um conjunto de apoios para esta edição, por exemplo a Ordem dos Arquitetos. É a demonstração de um maior grau de abertura por parte destas instituições?
O apoio da Ordem dos Arquitetos vem na sequência da necessidade de procurar um autor que ninguém sabia muito bem onde ele parava, o Pedro Potier, e daí a justificação para o agradecimento à AO. Em relação ao Centro Nacional de Cultura foi a tentativa de arranjar algum apoio institucional. De outras instituições, mais ligadas ao universo da BD, nota-se uma falta completa de estratégia e de um pensamento sobre as coisas. A Bedeteca de Lisboa está completamente abandonada, fez 20 anos este ano mas não se fez completamente nada, a Amadora BD convidou o ano passado os autores da Visão para uma conferência, mas isso obviamente não chega. Também contactei o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, mas não há nenhum plano para fazer um trabalho de reedição, ou seja, novamente a questão do património visual, gráfico.
Havendo já todo um trabalho de pesquisa, de tratamento dos originais e arquivo não seria de pensar numa exposição dessas pranchas?
Tem-se falado nisso. Lançou-se essa hipótese pela Bedeteca da Amadora, na pessoa do Pedro Moura, que tem feito um pouco a programação lá, mas nem sequer penso muito nessa questão. Infelizmente, a estrutura da Chili Com Carne é pequena, e o tempo que temos é consumido pelos próprios livros deixando pouco tempo para pensarmos em actividades de outro âmbito ou envergadura.
Não sendo exclusivo da Chili Com Carne, por exemplo nota-se isso na Arara e na Serrote, há um cuidado muito grande na apresentação das vossas edições. Revisão apresenta pequenos detalhes como os limites das folhas coloridos, a capa redonda.
Os cantos redondos da capa já foram apresentados no Pénis Assassino e os limites das folhas a uma cor no “A” Maiúsculo com um Círculo à Volta. Neste contámos com a ajuda da gráfica que nos apoiaram na capa. Estes pequenos apoios permitem não só dar uma maior dignidade ao livro, como o vender a um preço bastante acessível. O grande drama muitas vezes é depararmo-nos com papéis com x gramagem e outros aspetos e que por questões orçamentais ficamos obrigados a andar sempre no limbo para poder fazer um livro barato. Mesmo a ordenação das páginas de que falávamos, onde tivemos de estar a separar todos os materiaizinhos, a separação dos trabalhos a cores e a preto e branco, a escolha do papel transmitir uma imagem de fragilidade, toda esta ginástica prende-se com esta ideia de um livro que deve ter um preço acessível.
Há uma ligação já habitual entre o universo da BD e da música, nomeadamente através dos trabalhos do Jorge Lima Barreto e do Carlos Zíngaro.
São dois casos distintos. O de Jorge Lima Barreto foi mais uma brincadeira. O trabalho que se apresenta no Revisão aparece no livro que editou sobre música negra e jazz, mantendo sempre o lado provocador que lhe é tão característico. Fez a BD sob uma temática anti-imperialista e utilizando uma técnica situacionista, que parte de uma matriz claramente popular, desmontando-a. É também muito o reflexo do experimentalismo dessa época, como por exemplo o músico ou o arquiteto a quererem fazer BD, ou pintura e a misturar as coisas. O caso do Zíngaro já é um pouco diferente, ele sempre fez BD e pintura, acaba por ser um caso curioso, uma vez que inicialmente ele pensava que iria tirar mais com a música do que com a BD, que como se sabe, acabou por não ser bem assim. Na música acabou por fazer mais coisas diferentes, algumas encomendas, e a BD tornou-se o seu jardim de experimentação.
Como pensam que seria trabalhar na Visão naquela altura?
Para lá de uma enorme liberdade criativa e desta mistura entre a música, pintura, publicidade parece que só nos primeiros tempos, com o Victor Mesquita como diretor, é que houve uma certa deriva numa determinada direção. No entanto, o Victor Mesquita acaba por ser expulso pelos próprios autores.
Não sei se havia uma ideia de profissionalização ou retirar alguns dividendos com esta passagem para o campo da BD, mas há nitidamente um caráter mais experimental. Mesmo o próprio processo era muito livre, o único limite existente era praticamente o número de páginas, logo aí havia uma liberdade enorme.
Esta liberdade reflete-se muito na qualidade dos desenhos, a título de exemplo, os de Carlos Barradas, Pedro Potier, Isabel Lobinho…
Essa liberdade reflete-se, tanta, a nível do argumento, nos temas abordados, como no desenho. Por exemplo, e na sequência do que falávamos, a Isabel Lobinho esteve ligada ao mundo da publicidade e é autodidata, o Carlos Barradas ligado ao mundo do cartoon, o Nuno Amorim e o Zepe estão ligados à animação, o Zé Paulo já fazia cartoon e BD. A maior parte dos autores apresentados, por razões diversas, perderam esta ligação à BD. Aliás, um dos objetivos para editar este livro foi mostrar o trabalho de quem entretanto não fez mais nada nesta área, que talvez por ter deixado de haver uma publicação como esta, que oferecesse as condições que a Visão ofereceu, deixou de estar interessado em seguir este rumo. Em relação à edição de livros mantiveram-se o Pedro Massano e o Victor Mesquita. Mas a perda gradual com o universo da BD por parte de muitos autores é muito comum a diferentes gerações no nosso país, seja com a minha geração, seja com a dos oitenta onde sobressaem o Relvas, o Arlindo Fagundes, o Pitanga. Este padrão tornou-se comum no país, ou porque não havia editoras a encomendar trabalhos ou porque não apareciam novas estéticas por parte dos autores, praticamente é um marasmo, interrompido em 1996 pela Bedeteca com reedições e edições de novos autores. Mas atenção que me refiro a livros e não a zines ou publicações esporádicas, que essas sempre houve.
No momento que vivemos faria sentido uma revista como a Visão?
Parece que em países como a Espanha e França nota-se o ressurgimento do formato revista, depois de uma crise que percorreu as décadas de 80 e 90, mas as pessoas, independentemente do formato, nunca deixaram de experimentar, através das fanzines, por exemplo. Tirando talvez o Japão, com um universo de revistas ímpar, no mundo ocidental não há muito este formato, no entanto, tal não inibe as pessoas de publicarem através dos livros de autor, de pequenas editoras.
Mas não faria sentido, então, a união entre pequenos editores?
Sou sempre a favor de qualquer ideia que leve à união de se criar um coletivo; não é por acaso que a Chili Com Carne edita as diversas antologias. No concurso dos 500 paus abrimos a vertente para trabalhos de diversos autores e propusemos que alguém se assumisse como o editor de uma antologia, mas ainda não aconteceu.
Mas é bom relembrar que a Visão só surge porque houve o tal empresário que deu o dinheiro, que o Victor Mesquita pega numa geração de artistas e que os congrega para a revista. Havia também um contexto de divulgação de BD na altura que não há hoje. Especula-se, por outro lado, que havia um programa politizado característico da época. Hoje em dia, se houvesse um empresário que apostasse nesta área, mas não há e o mecenato que se faz ou é através de bancos ou companhias como a EDP.
Para não nos cingirmos ao universo da Revisão o que é que a Chili tem previsto até ao final do ano?
Editaremos um livro sobre o punk em Portugal na década de 80 e 90 da autoria do Afonso Pinto. No âmbito da Mercantologia haverá um livro da Amanda Baeza, BD’s soltas dela, e que terá uma edição em espanhol e em inglês, para lá da portuguesa. Há ainda os 500 paus do André Coelho e com a Thisco iremos editar muito provavelmente o livro do DJ Bali. Através da Mmmnnnrrrg serão apresentados o livro de um autor sul-africano, o Anton Kannemeyer e outro de Simon Hanselmann, que é um autor da Tasmânia, travesti e muito drogado. Promete.