Em 1977 tudo era disco sound na pista de dança, tudo era punk na rua, tudo era loucura na cabeça de Iggy e de Bowie, em Berlim. Em Berlim, Alemanha, ocidental, oriental, leste ou oeste, vodka ou whisky, países neutros ou neutrões. Tudo a arder em Iggy e Bowie na Berlim destruída e reconstruída. Bombas Bowie Iggy detona.
No final da década de sessenta Iggy Pop tinha sido o vocalista dos The Stooges que em apenas dois álbuns explodiram o passado deixando o futuro para ser construído. Em 1977 os Sex Pistols gritavam No Future e gravariam No Fun dos The Stooges. O manifesto punk da negação. Mas a pedra certeira tinha sido atirada em 1973 com os dois manos Ron e Scott Ashton no ritmo, Iggy a urrar e James Williamson na guitarra. No álbum Raw Power tudo é sexo, drogas e rock’n’roll em altas doses, excesso três anos antes do punk e um pontapé nos cornos dos chatos progressivos então nos tops e na moda. Gravado em Londres e misturado por David Bowie, saído recentemente do glam rock, Raw Power era o fim do mundo anunciado não por pregadores mas por rapaziada americana alucinada. Assinado por Iggy Pop and The Stooges nem Londres nem Bowie o esqueceriam e a radiação contaminaria o fog londrino até finais da década. James Williamson, texano crescido em Detroit, entraria para os Stooges já depois dos dois primeiros álbuns e com a banda em desagregação decadente. Além de tocar como se disparasse uma metralhadora também compunha e produzia. A sua marca em Raw Power é inconfundível e corrosiva, a música Search and Destroy com os seus riffs e solos de napalm e a sua letra manifesto de existencialismo e niilismo urbano cuspido nos ouvidos das pessoas por Iggy. Ainda gravariam juntos e ao vivo Metallic K. O em 1976 e Kill City gravado em 1976 e editado em 1977, este já com outros irmãos que não os Ashton; os irmãos Tony e Hunt Sales. Iggy está mal, muito mal, interna-se numa clínica de desintoxicação e depois ainda participa na tournée de Station to Station de David Bowie. Mas Iggy estava mal. Ausgang.
Se Iggy era a Iguana, Bowie era o Camaleão. Desde os anos sessenta que gravava, de rhythm & blues a folk, de glam rock a soul. Era o soul com tempero funk que o álbum de 1975 Young Americans trazia, e esse tempero era cozinhado em grande parte pela guitarra de Carlos Alomar. No ano seguinte Station to Station misturava esses ritmos negros com sonoridades europeias como o krautrock ou motorika alemão, abrindo espaço ao ritmo mas com experimentalismo. Ele funk branco. Mas Bowie estava mal, muito mal, Bowie já não era Ziggy mas partiria com Iggy não para Marte mas para Berlim. Em 1976 depois da tourné de Station to Station chegam juntos à cidade dividida. Autobahn.
Berlim, bairro de Schoneberg. Poderia estar escrito numa parede, “Bowie ama Iggy”. Poderia. Guerra fria. 1977; o ano punk por excelência, nos cinemas Saturday Night Fever celebra o disco sound, Elvis morre e os Kraftwerk cantam no disco Trans-Europe Express a faixa Station to Station, back to Dusseldorf city, meet Iggy Pop and David Bowie. Entretanto entretêm-se numa pequena tournée que daria origem ao disco de Iggy TV Eye Live 77, Bowie discreto no piano. Auto-exílio dos excessos, tóxicos, etílicos, na antiga capital do Reich. Tentavam a fuga para a frente. Estavam mal, os dois. Dois artistas, uma cidade, um ano, quatro albuns.
Idiot e Lust for Life para o Iguana, Low e Heroes para o Camaleão. Quatro álbuns que antecipavam o pós punk, a new wave mais negra. A estranheza criativa, a estranheza como fuga, como beleza. Zeitgeist.
Iggy Pop na voz, David Bowie no piano, o porto-riquenho Carlos Alomar na guitarra, Ricky Gardiner, escocês, na guitarra, os irmãos americanos Tony e Hunt Sales no baixo e bateria. Provavelmente a melhor banda de sempre. Lust for Life. O único dos quatro álbuns gravado unicamente em Berlim, no Hansa Tonstudio, conhecido pelos artistas como “Hansa Studio by the wall” pois estava colado ao muro. Bowie loves Iggy poderia estar grafitado. Poderia. Assinado estava Bewlay Bros na produção, o que significava os dois répteis e Colin Thurston, em breve envolvido na produção dos New Romantics dos oitentas. Os góticos provavelmente também vieram, aqui, nestes álbuns beber o sangue. Nove músicas, mais acessíveis que as de The Idiot e que em 1996 por causa do filme Trainspotting algumas iriam pôr gente aos pulos em festas e discotecas. Antes, só alguns apreciavam esta ambrósia, em casa, em segredo, e bebiam tudo, ao contrário dos que agora dançam nas discotecas. Num filme de junkies, música de quem tenta agarrar-se à vida. A morte de Elvis prejudicaria a promoção e venda do disco pois a RCA deu prioridade a reedições e compilações do falecido.
Só existe algo em comum nestes quatro álbuns sem ser a Iguana e o Camaleão, sem ser Berlim, sem ser a tal estranheza no som e nas letras, sem ser aquele ambiente frio europeu mas em chamas por dentro, sem ser aquele rock sem roll mas com um groove drunfado, sem ser a provável invenção do pós punk como se o punk não existisse; Carlos Alomar, o porto riquenho. Mulato, a criar aquele som de guitarra. Criado em Nova Iorque, tocaria entre outros com Chuck Berry ou James Brown antes de encontrar Bowie em 1974 e participar em onze álbuns do Camaleão. Nunca ninguém colaborou tanto com o inglês como ele. Bowie sempre soube rodear-se de cúmplices, sempre foi um grande criador e um grande reciclador. Em The Idiot e Lust for Life ajuda Iggy na composição. Em Low e Heroes conta com outro guitarrista como Robert Fripp, ou o feiticeiro Brian Eno, ou a ajuda na produção de Tony Visconti. Depois destes dois ainda viria em 1979 o terceiro álbum da sua trilogia berlinense, Lodger, com Alomar presente.
Os The Clash em Londres afirmavam “No Elvis, Beatles or Rolling Stones in 1977”.
Em Nova Iorque Television, Patti Smith ou Talking Heads beijavam o futuro.
1977. Elvis morria. O rei já andava nu fazia algum tempo. Rei morto, rei posto. Iggy Pop. Em 1977 o rei do rock.
Numa parede, talvez do infame muro, poderia estar escrito “Bowie ama Iggy”. Poderia.
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