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Gina Pane foi pintora, escultora, fez instalações vídeo e performance. No entanto o trabalho que ressalta são as suas fotografias documentais de performances cuidadosamente encenadas de auto-flagelação.

Pane nasceu em 1939 em Biarritz e morreu em 1990 em Paris. Cresceu em Itália mas voltou para Paris para estudar na Escola de Belas Artes, de 1961 a 1966. Participou no Atelier d'Art Sacré de Maurice Denis. Em 1978 criou um estúdio de performance no Centre Georges Pompidou. Começou por fazer pinturas geométricas antes de iniciar o trabalho na escultura e instalação. As suas primeiras pinturas mostravam já uma preocupação com o que viria a ser o seu tema de trabalho: o corpo.

Primeira representante em França da arte corporal, Pane demarca-se dos termos happening e performance para evitar qualquer conotação teatral. Ela elabora as suas “acções” (nome que ela prefere) através de storyboards extremamente rigorosos e pormenorizados. Começava em folhas de papel leves e de pequeno formato, acrescentando folhas através de colagens à medida que o projecto se desenvolvia e crescia.

Muitos dos seus trabalhos de auto-flagelação mostram um comprometimento com o feminismo do final dos anos 60, a sua identidade política e preocupações ambientais. Estes seus trabalhos deram-lhe a reputação de uma artista com um trabalho feminista. No final dos anos 60 certas características estão já presentes nas suas acções: o corpo da artista é central, quer em movimento quer em posição de silêncio, de ouvinte, mas é parte de um todo que a artista pode mudar. Assim, há duas coordenadas que se notam nas suas primeiras obras fotográficas e nas primeiras instalações: a do respeito pela natureza e pelo Homem, e o pressuposto de que a arte contribui para a mudança de sensibilidades e do mundo. Nesse contexto, temos peças como Pierres Déplacées, numa relação próxima com a artista. Também Terre Protégée e La Pêche Endeuillé têm semelhanças formais, mas enquanto o primeiro mantém a relação com a natureza, o segundo é um memorial à explosão nuclear do atol de Bikini em 1954. Dessin Verrouillé (1968) alinha com o começo da Arte Conceptual Europeia. Neste caso ela convida o público a confiar nela, encerrando o seu trabalho numa caixa de ferro soldada. O trabalho está escondido, não se vê, mas existe.
Já nos anos 70, em Continuation d’un Chemin de Bois, a artista traçou num único dia de trabalho árduo um trilho que não acaba nem começa. É um contínuo na paisagem, um trilho não recto, antes orgânico que se inscreve no terreno cortando uma certa monotonia. Em 1971 Pane mergulhou as mãos em chocolate líquido a ferver, como tentativa de vencer a indiferença das pessoas em relação à morte de um jovem toxicodependente e o impulso que têm para esquecer. Assim, o seu corpo torna-se o centro da sua rebelião e da sua esperança de mudança. Pane disse, acerca da ferida «(…) se não há amor, no sentido mais universal da palavra, este gesto não pode ser feito. É impossível.»

O corpo da natureza ferida é o ponto de partida para a sua série Blessures pela qual a artista é mais conhecida e no qual traça um arquivo da dor humana. Blessure Théorique é um tríptico de fotos. Na primeira a artista golpeia uma folha em branco com uma lâmina de barbear, na segunda o papel esburacado é colocado na terra e a lâmina golpeia-o novamente até a terra por baixo ser visível e na terceira a artista faz uma incisão com a lâmina no seu próprio dedo. Esta sequência é fundamental no aprofundar da temática da ferida e como ligação à sequência Terra/Ser Humano, mas é também a primeira vez que a artista mostra a intenção de praticar agressões auto-infligidas.

Em Azione Sentimentale (1973) a auto-flagelação é mais explícita. Uma sequência de fotos em que a artista vestida de branco, com um ramo de rosas na mão e novamente utilizando uma lâmina de barbear, efectua vários pequenos golpes sucessivos no antebraço e levanta um pouco a pele, passando as rosas vermelhas a ser brancas. Alguns elementos remetem-nos já para a temática do mártir (que viria a explorar mais tarde). A artista santifica-se. Os golpes no antebraço são as escadas através da dor que o mártir tem de subir para se tornar santo. É por isso que as rosas depois se tornam brancas. É o sinal da passagem concluída. Os grandes óculos escuros (objecto habitual nas suas acções) separam-na do ambiente. Gina Pane não deixa a apresentação do seu trabalho ao acaso. Tudo o que ela realiza é cuidadosamente estruturado para que a sua linguagem corporal diga exactamente o que ela quer que seja dito.

Em Discours Mou et Mat (1975) tudo acontece sob o signo da alienação: um corpo está deitado nú de costas para nós, enquanto Pane simula um jogo de ténis e toca pratos que estão forrados a algodão. Um espelho onde estão desenhadas estrelas é partido (as mesmas estrelas que se vêem tatuadas na sua mão e nas costas do modelo). Na sequência do partir do espelho, a artista corta-se com uma lâmina. Na última imagem, Pane, deitada ao lado do modelo vê o céu através de uns binóculos. O trabalho de Pane é composto por «actos efémeros, com vestígios douradoros e gestos ritualizados, centrados na ferida» - Anne Tronche in Gina Pane. Em seguida, a artista explora um tipo de trabalho que abre um momento diferente na sua obra. No ciclo Partitions, continua a explorar o corpo e a auto-flagelação mas agora em instalações de composição geométrica em que conjuga desenhos e fotos das suas “acções” com outros objectos. Nos anos 80, Pane inaugura um novo ciclo que mistura as suas anteriores preocupações com os fenómenos religiosos e questões de fé, mas que ela já explorava desde a década anterior.

Pane sabe que os santos comunicam sempre com o povo através do seu próprio corpo. Estigmas, flagelação e desmaios eram manifestações de santidade, mas também a empírica certeza da existência do divino. Não é por acaso que existem relicários, uma linguagem que todos podem entender. É o corpo que fala, não as escrituras. É este o tema em Chair Ressuscitée (1988). Os materiais unem-se para criar uma visão corpórea. A impressão de esqueletos que se lêem nas cinco folhas de metal que conjugam ferro, lata e cobre, dão uma imagem explícita de sarcófago, de túmulo que se multiplica revelando um corpo que não morre.

La Prière des Pauvres e le Corps des Saints (1989/90) é a sua última instalação, apresentada numa exposição no ano da sua morte. São nove vitrinas em grupos de três, dedicadas a São Sebastião, São Francisco e São Lourenço. Sarcófagos transparentes nos quais repousa a impressão dos seus corpos e os símbolos iconográficos de cada um.

Antes de morrer, Gina Pane tinha já imensos planos para o futuro, para trabalhos e exposições, tentando travar o avanço do cancro. O corpo foi o seu meio de trabalho, físico, psicológico, ideológico e estético. As feridas superficiais que ela infligia a si própria com uma lâmina de barbear pretendiam mostrar a fragilidade do corpo e o sangue, a energia vital que ele encerra. Ela defendia o corpo como um local de dor e sofrimento. Chamava a si o sofrimento do mundo.

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