Passo a apresentar-me - chamo-me Pulex irritans — para os “amigos”, pulga dos humanos. Pertenço à grande ordem das Siphonapteras que gostam de perfurar a pele dos mamíferos, injectar a saliva e sugar o sangue. Sou uma singela pulga-fêmea doméstica, no meio de cerca de duas mil e tal espécies conhecidas de pulgas. Recentemente, evoluí para a Ctencephalides felis, porque como sou democrática, mordo indiferentemente gatos, cães, porcos e Homo sapiens, pobres e ricos. Porém, cada irmã minha tem aspectos físicos de acordo com a aptidão para atacar cada tipo de animal de sangue quente.
Hoje em dia, todos me odeiam e me temem porque me associam à minha prima direita, a pulga dos ratos que propagou surtos de peste bubónica na Alta Idade Média. Sou associada às impurezas e às doenças e muitas empresas de insecticidas fazem a sua riqueza à minha custa. Contudo, nem sempre foi assim. A minha existência é feita de altos e baixos. Desde o dealbar dos seres vivos de pêlo e penas que eu os pico e sugo. Imagine, querido leitor, que durante o Renascimento fui muito respeitada pelos amantes e pelos poetas. Cada namorado transportava, dentro de um medalhão, uma pulga que havia sido catada pela amada no seu próprio corpo. A metáfora erótica do sangue partilhado pelos dois amantes devido à minha picada foi cantada pelo poeta inglês John Donne no poema The Flea: «Mark but this flea and mark in this / How little that which thou deny’st is; / It sucked me first, and now sucks thee, / And in this flea our two bloods mingled be; (...)».
Entre o final do século XVI e início do século XVII fui celebrada por artistas da escola Holandesa, cujos quadros tinham uma beldade desnuda e apostada em me caçar. Para o voyeur lúbrico eu era o “Wally” aos pulos no corpo da querida! No século XVIII, na corte francesa de Versalhes, as belas aristocratas (que no fim de contas eram umas porcalhonas, pois encharcavam-se em perfume mas não se lavavam!) usavam, por debaixo das pesadas armações das saias, uma cestinha diária com sangue fresco para que eu e as minhas manas não as comêssemos vivas, Ih Ih Ih... Mas eu tinha nascido para outros vôos, perdão, saltos. Fiquei associada aos Circos de Pulgas, mito da cultura popular, durante todo o século XIX, até ao início do século XX. Eu fazia as delícias de miúdos e graúdos. Trabalhei muito tempo para o Signor Bertolotto, famoso amestrador de pulgas. Viajei entre Londres, Nova Iorque e Canadá; fui homenageada pelo escritor Charles Dickens e até o poeta Appollinaire dedicou-me uma quadra: «Fleas, friends, lovers too, / How cruel are those who love us! / All our blood pours out for them. / The well-beloved are wretched thee.» Os espectáculos do Signor Bertolotto chamavam-se Industrious Fleas e tinham carácter político, com claras referências a Napoleão Bonaparte ou outras figuras e factos da época. Bertolotto, que conhecia as pulgas por dentro e por fora, publicou várias versões de um livro intitulado A História da Pulga com Notas e Observações, 1835-1846. Ficou célebre a minha actuação a dançar a polka (1859) e a representação da personagem D. Quixote de la Mancha. Todavia, eu também tinha de puxar uma carruagem miniatura com o dobro do meu peso. Nem tudo era glamour. Vivia em cativeiro, com outras pulgas-fêmea – os machos não são passíveis de serem amestrados — e trabalhávamos que nem umas desgraçadas, até à exaustão.
Aposto que os leitores se interrogam como era possível apanhar uma pulga e amestrá-la. De facto não era lá muito simples e muitas de nós morremos esganadas ou decapitadas. O estudioso Buckland explica: «A pulga é manuseada com suavidade e um laço muito fino de seda é passado à volta do seu pescoço, apertado com um nó especial. Infelizmente para a pulga, esta possui uma depressão estrutural entre o pescoço e o corpo, a qual é útil para colocar o laço» (Buckland, 1891). Como pode ler, era um processo delicado e perigoso.
No século XVIII, na clausura dos conventos mexicanos, algumas freiras entretinham-se a fazer vestidos minúsculos para mim. Mais tarde, os entomologistas (estudiosos dos insectos) designaram essa actividade lúdica de “Pulga Vestida”. Quem for ao The Museum of Childwood, Edimburgo, Escócia, pode observar-me vestida de noiva e outras pulgas vestidas de noivo, padre e convivas da festa. Estamos dentro de uma caixinha. As crianças e adultos acham muita graça... Eu não acho graça nenhuma. Gostava de saber se os humanos também se prestariam a estas fantochadas para depois serem observados por famílias de pulgas!
Porém, tenho ainda mais histórias e curiosidades num pêlo da minha manga direita. Nos anos cinquenta, trabalhei no circo itinerante do Professor Heckler. Era um homem gentil e generoso. Ele deixava-me beber um bocadinho do seu próprio sangue. Sim! Eu tinha de me alimentar. Em relação à minha vida sentimental, esta é uma complicação. Eu que uni, no passado, tantos amantes, estou condenada a me unir com um idiota. O macho é tão calaceiro que a cópula pode levar de três a nove horas!!! Pois, pois… E tanta pupa para pôr no mundo.
Coisas que eu odeio, além da preguiça do meu parceiro – o odor a desinfectante Listerine e citronela, vegetal da família da verbena. Coisas que eu gosto – tomar um bom pequeno-almoço de sangue feminino. Como este contém hormonas saborosas, é o meu preferido. Se não acreditam vejam os quadros a óleo de George La Tour ou de Giuseppe Maria Crespi, ambos intitulados The Flea, com umas leitosas damas a tentarem apanhar-me.
Graças à minha intimidade com os humanos, ao longo dos tempos, também figuro em expressões idiomáticas, ditados, lenga-lengas infantis, advinhas e quadras populares brejeiras: Ter a pulga atrás da orelha (estar desconfiado) / Há muitas maneiras de matar pulgas (resolver problemas) / Estar em pulgas (estar ansioso) / Não morder a pulga (muito trabalho); Pelo tempo das favas chegam as pulgas (início da Primavera); «A cama do soldado / é um belo paraíso: / a pulga toca viola / o piolho toca guiso» ; «A pulga mais o piolho, / ambos estão doentes. / À pulga dói-lhe a barriga, / ao piolho doem-lhe os dentes»; «Se eu tivesse a liberdade / que a pulga tem no serão, / apalpava as raparigas: / esta é gorda, aquela não...».
Se quiser saber mais coisas sobre mim, procure-as no artigo da revista Smithsonian, Julho de 1995. Como se faz tarde, e acabei de ver uma robusta menina, vou dar um salto daqui para fora!