Preparem esses estômagos, porque a ementa de hoje é um osso duro de roer. Rafael Bordalo Pinheiro serve-nos um banquete universal no sentido literário da expressão. A sua obra intemporal já atravessou o Atlântico até Nova Iorque, para uma exposição no MoMa, desceu até ao Brasil onde inspirou artistas e aterrou no mundo inteiro em malas de turistas que levam para casa os souvenirs de louça ou dos emigrantes de tempos idos que tinham nas paredes brancas as andorinhas de porcelana, negras e saudosistas que sempre regressam na Primavera.
Falamos do maior génio da sátira portuguesa. Dedicou uma vida inteira ao artesanato e à arte de fazer rir, habituando-nos a degustar gravuras temperadas com ironia, acompanhadas de mordazes bandas desenhadas, confitadas com cerâmicas cozidas em forno industrial, recheadas de cor e naturalismo. Volvidos mais de 100 anos, agora que o bolo do caco e o gin estão na moda, a obra de Bordalo Pinheiro não podia ser mais actual ao paladar dos portugueses. Não falo só das porcelanas berrantes e do lugar que o universo kitsch ocupa nas casas modernas, mas falo também do tema central dos seus trabalhos: a decadência política e económica que vitimava e continua a vitimar Portugal.
Através da arte popular e do design rústico, Bordalo Pinheiro foi um homem de mil ofícios: desenhador, decorador, caricaturista, jornalista, ilustrador, ceramista e professor. A sua arte conta-nos a verdade amarga com figuras doces, deixando-nos retratos de um Portugal sofrido dos finais do século XIX, que no entanto, nunca perdeu o ar de sua graça. Ora sabemos bem, que em casa de bom português, as questões difíceis ficam mais leves à mesa. Numa altura em que o “Zé Povinho” penava por pão e vinho, a “Maria Paciência” se inquietava com questões da vizinhança, “O Padre” tomava rapé e a aristocracia se empanturrava com abundantes manjares, Rafael Bordalo Pinheiro criticava as discrepâncias abismais desta última ceia com papel e carvão.
A Grande Porca é um dos mais ilustres exemplos disto mesmo: “Cá pelo país está tudo diferente e tudo na mesma. As lutas pelo poder continuam. Os partidos sucedem-se.” – a perfeita comunhão entre a crítica e a gastronomia. É notório o seu gosto pela boa mesa. Registava em cada obra a dieta alimentar portuguesa, a culinária caseira, os espaços de consumo e hábitos de etiqueta de faca e garfo. Tomates de porcelana, pimentos com as cores da bandeira transformados em caixas, jarrões em formato de abóbora, laranjas onde se serve o chá quente, tigelas vistosas como as couves da horta, demonstram o labor frenético e decorativista que o caracterizam. A textura inconfundível dos alimentos também nunca lhe escapou, traçando o perfil de um Portugal rústico e enrugado. Dos banquetes de homenagem não só deu notícia, como os decorou e compôs graficamente os seus menus, ao caricaturar os convivas e retratando-se a si mesmo entre os objectos sobredimensionados da culinária lusitana.
Bordalo Pinheiro é o exemplo perfeito de que inconformismo criativo e funcionalidade não se excluem à refeição: a cerâmica utilitária une-se com a natureza, o humor e a alegria. Mas Bordalo não se restringiu apenas à fabricação de louça ornamental e o seu apetite foi mais além. Desenhou uma baixela de prata da qual se destaca o faqueiro que executou para o visconde de S. João da Pesqueira e satisfez dezenas de pequenas e grandes encomendas para a decoração de palacetes: azulejos, painéis, frisos, placas decorativas, floreiras, fontes-lavatório e centros de mesa.
No desenho e na pintura representava velhos costumes: do tradicional mercado de rua aos armazéns de víveres à ida às hortas, da prova de petiscos em balcões de tasca aos refinados restaurantes de chefs. Não esqueceu espaços domésticos, a cozinha e o fogareiro. Concebeu rótulos, embalagens e anúncios que publicava nos jornais e traduziu graficamente expressos, saborosas metáforas como “castanha da boa”, o “caldo entornado” e o “desaguisado”.
O seu legado cultural que conta parte da nossa história, está agora a ser redescoberto e reinventado por novas gerações de artistas contemporâneos como aconteceu a propósito dos 125 anos da Fábrica Faianças Artísticas. Joana Vasconcelos, Catarina Pestana, Henrique Cavatte e Elsa Ribeiro são exemplos que encontraram em Bordalo Pinheiro um ponto de partida para a modernidade poética, ecológica e socio-cultural, e vão pescar às criações das Caldas da Rainha, traços carnudos da obra do ceramista.
E já que falamos em pesca, a última homenagem ao ceramista fez-se com as típicas sardinhas das varinas, para acompanharem o bacalhau que virou travessa de mesa ou as lagostas em jarro para por na prateleira. Só que estas sardinhas não se assam na brasa: têm fadistas, piropos, o Tejo e até a bandeira nacional a fazer as vezes das escamas. São de louça e servem-se enroladas em papel de jornal, como antigamente.
Mas uma coisa vos garanto, vêm abençoadas pelo Santo António, porque se comer não fosse a melhor coisa do mundo, não nos tinham posto o céu na boca.