Fotografias: António Néu.
Uma multidão imensa amontoava-se e diz a organização que atingiu este ano os 109.000 festivaleiros provenientes de 99 países. Por momentos a excitação foi substituída pelo medo e o cenário do Sónar poderia comparar-se à parte final do filme Strange Days. Não, nada disso, o que se viveu ali foi um caos controlado, apesar de o ambiente ser próximo a qualquer cenário de ficção científica, tudo correu na ordem da normalidade e até as filas eram consideravelmente inferiores às de qualquer festival por onde já passei.
Hoje, segunda-feira acordo a pensar no quão difícil é compactar num texto tantas emoções. Foram três dias a viver numa espécie de realidade paralela preenchida com uma infinidade de momentos e só agora, depois de olhar para as fotografias consigo transportar para a escrita algumas das sensações que me contagiaram. Uma delas foi o momento final do festival. Um temporal abateu-se sobre o palco do Sónar Pub e ao som dos alemães Boys Noize todos dançavam à chuva de uma forma totalmente feliz e liberta, a assinalar o final de três dias e duas noites de um festival memorável.
A noite começou ao som da gótica presença da menina que canta I Follow Rivers. Likke li entrou no palco vestida de negro e envolta numa penumbra quase enigmática. Timidamente disse ao público que ia cantar temas do seu novo álbum I Never Learn. Poucas pessoas teriam mais de 30 anos e dançavam lentamente ao som de um concerto que foi bastante intimista e performático, devido à sua atitude teatral, dramática e simultaneamente doce.
Seguidamente Nile Rodgers enfiou-nos numa máquina do tempo e levou-nos à época dourada do disco sound. Deu uma lição de música e de atitude a um público que ia dos 18 até aos 60 anos, e ainda nos tirou uma série de fotografias. Foi o seu regressso ao Sónar após 2006 e não só cantou vários hits do disco sound que tão bem conhecemos (Le Freak, Good Times) como mostrou a grande influência que exerce na música de dança de hoje, em temas como Get Lucky dos Daft Punk. Nile Rodgers foi também um compositor e produtor-chave, trabalhando para personagens como Diana Ross, David Bowie, Madonna e muitos outros. Conseguem imaginar a pista quando Niles cantou Let's Dance de David Bowie e Like a Virgin de Madonna? Este foi um dos grandes concertos do Sónar e no final transformou-se numa festa, altura em que o staff invadiu o palco. Palmas e vénias para ele.
As luzes e os néons do Everybody Dance foram substituídas pelos néons dos carrinhos de choque e pelo palco Sónar Car, e foi ao som do português DJ Nigga Fox que demos cinco voltas seguidas, sem praticamente chocar com ninguém. Estava na hora de ir buscar uma bebida, descansar as pernas e fazer mais umas amizades com as personagens que por ali circulavam. Várias vezes me lembrei de Tóquio e das famosas "fruits" que tanto vi em livros. No Sónar a excentricidade faz parte do décor.
Ainda indecisa entre James Murphy (que já vi algumas vezes), o francês UZ e Matthew Dear (EUA), James, o novo amigo da Nova Zelândia, aconselhou-me este último, que estava a tocar no Sónar Club. Não, não foi um bom conselho e optei por voltar para trás. No meio de uma programação tão boa, aquele techno agressivo e minimal não me agradava. Já no bar, encontrei a Ana, uma portuguesa que já é habitué do Sónar há quatro anos, e começámos a recordar o dia anterior e o excelente concerto de Caribou. O matemático canadiano Dan Snaith trouxe-nos krautrock e a sua electrónica psicadélica que nos levaram ao auge aos primeiros acordes de Sun.
Na maioria dos festivais as pessoas compram bilhete para ver determinadas bandas. No Sónar vemos o que os programadores do festival escolhem para nós, pois não se trata de um festival de bandas hit e sim da apresentação de vários projectos, muitos deles experimentais e desconhecidos. Nós confiámos na escolha e vimos conhecidos, desconhecidos, mais experimentais e mais mediáticos. Entre eles Todd Terje, The Martinez Brothers, Four Tet, DJ Snake e os já reincidentes Buraka Som Sistema, que ao final da tarde de sexta-feira enlouquecerem de ritmo o Sónar Dome.
Era preciso dormir sobre todos estes acontecimentos e pensar se não teriam realmente feito parte de um sonho. De repente veio-me à memória o concerto de Matmos. Sabia que ia ser uma experiência única pois todos os seus concertos são muito conceptuais e experimentais. No palco constroem um laboratório de samples que se cruzam com as imagens que vão projectando. Fez-se silêncio e na sala escura, apareceu no écran uma enorme cabeça que, à medida que se ia transfigurando, debitava um texto de Christian Bok. De forma lenta pausada fez-me lembrar a spoken word de Burroughs. Este momento passou e MC Schmidt e Drew Daniel começaram em seguida a discursar sobre a forma acelerada em que vivemos hoje em dia e sobre o facto de as pessoas em festivais ansiarem por ritmos cada vez mais intensos. E assim introduziram, no écran, um compasso que ia debitando um número considerável de bpm's. Com o coração já a bater descompassadamente, saí da euforia e estendi-me na relva artificial a reflectir sobre tudo isto. Sobre o ritmo, sobre o experimental, o excesso de turistas que vão abafando Barcelona, sobre os workshops organizados pelo Sónar e a preocupação que têm em levar a música mais além e em criar palcos de discussão sobre variados temas.
Não, não foi um sonho, mas não está longe pois por vezes é difícil de acreditar na enorme quantidade de emoções que vivi em três dias e duas noites.
Mal posso esperar que chegue o próximo ano.
Até lá Sónar.