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Vigilantes Partos

Na Galeria Appleton os dois pisos são ocupados, até ao dia 3 de Fevereiro, pelas exposições de dois artistas: Ano Sabático, de Nuno Nunes-Ferreira, com curadoria de Luísa Santos e Ana Fabíola Maurício, e Guarda Nocturno, de Horácio Frutuoso.

A primeira exposição, como a definição de um centro de que resulta uma força centrípeta deslocada, apresenta uma estante metálica, de escritório, onde uma série de caixas de cartão estão expostas, apresentando um número correspondente ao mês do ano, de cujo período de trabalho resultou um conjunto de obras de arte, agora fechadas dentro da caixa, e cuja abertura inviabiliza imediatamente o valor artístico das peças. O despojamento visual que a peça de Nunes-Ferreira apresenta na sala é desmentido pelo excesso de informação descrita nas caixas, valendo-se, note-se, da repetição como recurso de agudização da atenção sobre a obra: o que é interessante é que a variação regular do escrito na caixa é precisamente o que leva o espectador a ler uma e outra vez, comparando as caixas entre si. A impressão de leveza da estante, o frio do metal de que é composta, a sobriedade da cor do cartão, as palavras em letra capital e dactilografadas a preto, a discrição da peça, faz recair no espectador o dever da suposição especulativa – como forte convicção facilmente revertida na impressão de se estar a incorrer na tentação vã de um deciframento interpretativo. À medida que o carrossel de imagens, na mente do espectador, ganha um ritmo e uma velocidade – o que estará dentro da caixa? -, dá-se um passo atrás, e assoma à consciência a obviedade de que o que nos defronta é uma obra coincidente com o seu próprio arquivo, situando-nos no espaço qualquer de uma sala contígua àquela em que se realiza e cria qualquer coisa. Sala de exposição, ateliê, arquivo? Mais correcto seria chamar-lhe antecâmara que, por definição, é o afluente de um espaço público, por muitos habitado. Antecâmara, portanto, espaço recuado, que resiste em diferimento relativamente à geografia da norma, da razão e do poder. Pensar que as caixas têm um peso maciço ou, por outro lado, que são tão-só o peso do cartão, da tinta e das mãos que as segurem, é um e o mesmo golpe faccioso, aliás, literalmente faccioso: a estante é, não só a representação de um conjunto de facções temporais e físicas, mas a sua própria concretização e, assim, a sua própria forma fantasiada. De resto, tudo e nada são autorizados por esta peça. Provisoriamente o que permite a consubstanciação de uma forma, cor e temperatura, enfim, uma unidade, são os próprios visitantes da exposição em torno de um objecto que nada lhes pode já dizer, virtualizados que estão no tempo arbitrário da exposição, que tanto incita ao desejo de chegar ao futuro com algo mais para contar, quanto devolve a imagem de um momento antecipado, assim volvido passado reminescente. No entretanto, é o presente que recua, e a ficção e o real tornam-se um e o mesmo solo. À factualidade como prova reguladora, impõe-se o autêntico como valor à prova de prova, bem como prova ironicamente à prova de valor, na medida em que são anunciadas as condições em que a arte deixa de ser arte: obra autêntica à prova de valor por via de uma ironia performática, a qual, negando o valor artístico, está precisamente a afirmá-lo e, a bem dizer, a inscrever um valor comercial, pelo primeiro determinado.

Guarda Nocturno, de Horácio Frutuoso, traz (ao arquivo em que toda a arte se torna, arquivo do mercado (e) dos Tempos) uma força arcaica, medida pelos tapetes orientais e magrebinos (kilims? persas?) assimetricamente dispostos e sobrepostos ao longo da sala, remetendo para esse universo, antes da teoria, da narrativa (como não pensar no gabinete do pai da psicanálise, Sigmund Freud?), bem como pelas pinturas de casas cindidas entre a construção e a ruína. Neste sentido, não é possível deslindar se se tratam de edifícios em plena edificação, se, por outro lado, são a estampa, isto é, a captação que de uma ruína o artista faz, obrigando-a a despontar. Ora, a destruição seria o processo do improdutivo, como a história é o mecanismo do irrepetível e a narrativa a prática do imponderável. Acciona-se uma engrenagem narrativa e os seus elementos compositivos são igualados no estatuto da incompletude. Assim, o acto de narrar não acaba mais, assim como o acto de entrar não termina nunca: ao tapete que se pisa, outros pés, passos e, figurativamente, outro tapete se forma. Uma e outra camada. Um e outro tecido: que protege no mesmo passo em que distancia de si.

Em Guarda Nocturno, o palimpsesto é o critério arquitectónico do espaço, bem como a sensibilidade e o artifício exposto das pinturas em torno de um centro que, a troco de uma vigilância impossivelmente isenta e inane, é imaginativa. A vigilância furta-se à unidade de um sujeito que a detenha como capa e estatuto para se tratar de uma forma de pensar a memória do espaço, a narrativa muda que ele conta, isentando-o de narrativas anteriores à configuração visual que nos oferece. Entrar num espaço, gesto prolongado pela tessitura que vamos compondo interiormente sobre esse espaço: sobre, no sentido de se debruçar sobre a matéria do espaço, e sobre na medida em que contribuímos com mais um tecido, mais um volume e um peso acrescentados. Entrar na galeria, incursar pintura adentro torna-se, com efeito, um modo de a velar (colocar o véu). Os tons pastel das pinturas de Horácio Frutuoso conferem às peças um tom e uma impressão familiares. Quantos são os exemplos do cinema contemporâneo em que o pastel surge como o filtro a partir do qual se conta uma história, cujos momentos são nada mais do que períodos do dia que todos vivemos: lembro-me, nomeadamente, de Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman. A junção de dourados e tons cobre desfaz, todavia, essa impressão, algo aconchegante, de familiaridade, para executar o remate de um passado arcaico, de uma matriz de que restam sinais equívocos: grandes blocos de pedra, janelas abobadadas, um céu negro, não obstante aveludado, convidativo, alguém cuja sweatshirt com padrão riscado e de All Stars destoa do espaço pela vestimenta, como se ali não pudesse pertencer, àquele lugar e àquele tempo. Esses sinais, que seriam os emissários resistentes de uma origem já muito distante, dispõem-se aparentemente e tão-só a uma simples codificação simbólica das formas. Assim, poder-se-iam delinear dois movimentos elementares de Guarda Nocturno: por um lado, o esboço de uma familiaridade, de um reconhecimento intuitivo das formas – a casa seria a unidade e o ícone básicos, talvez, dessa admissão dialogante -, por outro a sugestão da origem como investimento simbólico e, assim, responsável pela destruição de um edifício, para as novas imagens nascentes da formação de símbolos, sem que essa destruição chegue aos alicerces da casa. Em todo o caso, é em altura que se testemunha a destruição, e as casas de Horácio Frutuoso estão, muitas delas, pela metade do que foram ou do que virão a ser. Mas é a insídia de uma pergunta o que investe, e nos obstina, sobre a verdade: onde fica o chão? Onde é já origem e passado e já não casa e presente?

 

Maria Brás Ferreira não escreve ao abrigo do AO90.

Mestre em Estudos Portugueses, com a tese “Modos de Cindir para Continuar: uma leitura de A Noite e o Riso e Estação, de Nuno Bragança”, pela Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a tirar o doutoramento, preparando uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (2020) e Rasura (2021). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.

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