O Cerco de Lisboa no Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico
No livro de John Tagg, El Peso de la Representación, o autor explicita a prática da fotografia enquanto “método para proporcionar um novo tipo de conhecimento” ou, por outras palavras, uma prática que conduza a um caminho para “arte da verdade”. Uma prática ao serviço da ciência, “essencial para reproduzir todas as formas e estruturas que buscam o esclarecimento”, ou um suporte, documental, para temas tão sensíveis como os sociais ou políticos, ou, ainda, como base para o registo de acontecimentos históricos.
É certo que, na prática fotográfica, sempre existiu um esforço para a sua libertação do propósito representativo. Porém, é justamente na génese documental e de registo do real que a exposição O Cerco de Lisboa encontra o seu maior modo de expressão, o seu encanto, bem como a sua missão. Consciente de que as imagens e o trabalho do fotógrafo podem representar uma influência em sociedade, as imagens reunidas, sem filtros, revelam-nos uma cidade que temos dificuldade em reconhecer e aceitar. Sobretudo nos seus contornos mais complexos: a pobreza, a exclusão social, o tema dos sem abrigo, ou a gentrificação.
Alejandro Castellote, curador da exposição, assegura, justamente, a propriedade documental do grupo de fotografias que selecionou e que se encontram presentes, de momento, no Arquivo Municipal de Lisboa. Nelas podemos entrever a representação da “periferia social e urbana de Lisboa”, especialmente a zona que se inscreve no espaço compreendido no que foi a antiga muralha de Lisboa. Esse lugar perfeitamente identificado revela uma complexidade que se reveste de desarmonias sociais, extensíveis também a problemáticas em torno da colonialidade. Como nos diz Castellote, no texto de apresentação da mostra: “O Cerco de Lisboa inclui imagens dissonantes que revêem criticamente as iconografias da colonialidade ou a memória urbana de alguns bairros, aqueles que nasceram nas imediações de pequenas indústrias, criando um microcosmos social e iconográfico onde as fábricas coexistiam com negócios subsidiários e casas de trabalhadores”.
É, desse modo, a Lisboa das franjas da sociedade que surge representada nesta exposição. A Lisboa esquecida no tempo, que foi abandonada e substituída pelo glamour existente noutros pontos da cidade. Nesses lugares esquecidos, sonegados para segundo plano, habitam também migrantes das ex-colónias, que partilham a sua vulnerabilidade com desempregados, e grupos de sem abrigo. A exposição O Cerco de Lisboa, segundo Castellote, pretende dar visibilidade aos mais desfavorecidos, aos menos ouvidos, ou aos habitantes que optam por formas alternativas de existência e subsistência (como os jovens que recorrem à rua para manifestar as suas habilidades circenses).
Os artistas e fotógrafos presentes na exposição são Augusto Brázio, Lara Jacinto, Mag Rodrigues, Paulo Catrica, Pedro Letria, São Trindade e Valter Vinagre. Brázio encenta o caminho da exposição com o tema do colonialismo, e a sugestão aos agentes que ajudaram a criar o modelo imperialista. De seguida, Valter Vinagre expõe, de modo direto e claro, a condição dos sem-abrigo, através de imagens de lugares desagregados, ou peças de mobiliário dispostas ao ar livre, como se de um interior de uma habitação se tratasse. Vinagre trata com muito cuidado e respeito os protagonistas da sua história. Apresenta pessoas em situação fragilizada socialmente, retratadas em primeiro plano, como se, da parte do fotógrafo, houvesse a necessidade de lhes restituir a dignidade e glória que lhes foi sonegada, a que tinham direito. Mag Rodrigues apresenta-nos um grupo de imagens intitulado A Cor da Luz, que compreendem a abordagem a temas que a artista tem vindo a desenvolver no seu trabalho, como a estigmatização social. Nelas surgem a figura de duas mulheres albinas que a artista acompanhou nas suas rotinas diárias, pretendendo, com isso, “a normalização e dignificação da sua presença na cidade onde vivem”. As fotografias de São Trindade trazem-nos a Lisboa feita de despojos e fragmentos. Por meio da sua errância pela cidade, revela-nos lugares e objetos abandonados, entre deambulações baudelaireanas e objets perdus. Pedro Letria agarra-nos pela magnetizante clareza e magia com que retrata os jovens da comunidade de artistas de rua, que procuram subsistir com atividades malabarísticas e circenses. Paulo Catrica revela-nos Benfica, uma freguesia de Lisboa que conhece bem, sobretudo lugares em que o passado já imprimiu a sua marca. Lara Jacinto apresenta-nos uma Lisboa “das bordas”, como nos diz. Uma Lisboa segregada, dos bairros de lata, que prevalecem na sua memória de infância, e que viu acumular de lixo e de precariedade, relembrando-nos “a estratificação social, a falência das políticas sociais, de emprego, de habitação, de integração”.
O Cerco de Lisboa está patente no Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico até 2 de março de 2024.