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The Bedroom Series, Martîm

O que nos diz a Arte, e a História da Arte, sobre o Amor? Agora sem maiúsculas, sob pena de se considerar esta interrogação um tanto quanto pretensiosa: o que nos diz a arte, e a história da arte, sobre o amor? Um amor sem filtros, sem moralizações, sem intelectualizações, sem olhares cheios de mácula. Onde podemos encontrar uma história da arte escrita sob a égide do amor? Amor hétero, homo, trans, narcísico, pornográfico, sádico. Onde está essa arte, essa história? Sem teoria, sem contextos. Onde está essa história visual, plástica, sensual, em que o amor é enigma, é atração, confusão, medo, paixão, ternura, e o artista é émulo e mediador de sensações e sentimentos entre seres, registando as vibrações impercetíveis dos corpos, as descargas físicas e químicas mais profundas e mais epidérmicas, a estesia e a anestesia do amor pós-coito?

The Bedroom Series, de Martîm, situa-nos nestas indagações. O olhar do artista é um olhar apaixonado, enamorado, é o olhar de um amante que regista a sua intimidade e a de Diego, no quarto de ambos. O quarto é o lugar da compreensão do amor, da construção do amor, dos silêncios, diatribes e pequenas guerras da relação. É um lugar de reunião com a história de cada um, de reconciliação de histórias pretéritas, coletivas, que encontram aí uma sublimação que percorre todos os tempos e todos os espaços por que passaram ou que tocaram. As pinturas têm muito de eufórico, mas também de introspetivo. As cores garridas retratam momentos e gestos quietos, langorosos. Martîm é o fixador do momento. Diego é o momento em diálogo, um diálogo por vezes ridículo, como o poeta em tempos escreveu, por vezes crítico, incisivo, lapidar, que relembra a relação histórica entre os artistas e as suas musas.

Neste contexto, The Bedroom Series revive muita da teoria queer da arte e da história da arte, da revisão da narrativa histórica, da construção e desconstrução da linguagem e do olhar: o de quem se dá a ver (do modelo), o de quem capta (do artista), o de quem vê (do observador), o do exegeta, escritor e historiador.

Se Equal Dignity (2020) diz estarmos perante a celebração da igualdade e da diferença, a conquista de uma luta de décadas, Pão de Açúcar (2023) inscreve esta história numa geografia transatlântica. O amor é um ato político e, por vezes, reverberador de um passado convulso, de colonizadores e colonizados, fortes e fracos. Várias representações de formas de pão de açúcar pontuam a exposição, tais quais eram usadas durante a Rota do Açúcar dos séculos XV e XVI na ilha da Madeira, onde Martîm nasceu, e fazem uma ponte com aquele ícone geológico carioca, o morro do Pão de Açúcar, que marca uma inscrição indelével em Diego da sua terra natal. À simbologia fálica e erótica, sucede um bilhete postal afetivo.

Os corpos posam para o espectador. Os gestos, ora contidos, ora despudorados. Martîm e Diego são fotografia e pintura, sinceridade e teatralidade, franqueza e performance. Este é um casal de artistas: não são só as suas identidades que se moldam diariamente, mutuamente; também a própria conceção de arte e a prática da arte são construídas nesta relação, num diálogo profícuo e intenso, que não se esgota num semblante passivo. Eros caminha ao lado de Apollo. O erotismo consta da reflexão apolínea.

Este é o retrato de um casal e de um tempo para lá dos géneros, em que os sentimentos se mesclam numa atmosfera garrida, nervosa, confusa, intensa, antes de qualquer convenção social, ou, então, indiferente a esses estigmas. Deambulamos incertos de queremos ver estas obras. O voyeurismo, que tem tanto de primitivo como de complexo, foi previamente calculado por Martîm e Diego, e a tensão de um momento íntimo espreitado e sobreposto às nossas próprias fantasias parece-nos indiscutível, numa segunda leitura. Fica, contudo, impante, a celebração do amor, sem binaridades, sem complexos ou pudores, aqui eternizado, no papel, para comunhão de todos.

The Bedroom Series, de Martîm, com a curadoria de Mariana Baião Santos, está patente na galeria Plato, em Évora, até 9 de fevereiro.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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