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O abismo que te olha de volta

António Neves Nobre exibe, todavia, a sua nova exposição na galeria 3+1 Arte Contemporânea até ao dia 4 de março em Lisboa.

Normalmente, quando começo a escrever um texto sobre uma exposição de arte contemporânea, uma série de decisões editoriais são tomadas antes que o ecrã em branco do meu computador seja completamente preenchido por um mar de caracteres negros. Estas decisões influenciam a mim na ordem prática, como quando pondero acerca da escolha da melhor abordagem a recorrer. Muitas das vezes, este simples processo de contemplar o preâmbulo de um texto, podem custar-me horas, ou até dias.

No caso deste texto que está a ler, caro leitor, o tal processo de elaboração ao qual estava a referir-me, demorou não mais do que cinco minutos, talvez um pouco mais. A razão para esta velocidade de apuração prévia deu-se pelo facto de que eu atestei muito cedo a minha completa inaptidão.

Se eu fosse respeitar todavia por completo, para contemplá-la em toda a sua magnitude, deveria estudar a hermenêutica do universo, pois cada uma das suas peças, apesar de não nomeadas, existem e simbolizam tudo que há, ao mesmo tempo em que enunciam acerca do mais absoluto nada. Por isso, talvez este seja um dos meus features mais sinceros.

Bom, vamos a isto. Primeiro, a conduzir as formalidades necessárias.

Sete óleos sobre tela exibem-se nos dois níveis da galeria, ao lado de outros três conjuntos escultóricos que individualmente totalizam seis volumes de esculturas em bronze. A princípio, todas as telas são parecidas formalmente. São feitas com uma camada de cor sólida, e partilham um elemento comum na base inferior de cada pintura – nomeadamente uma densidade na base da composição visual.

As peças escultóricas também apresentam certa semelhança formal, ou melhor, apresentam-se ao público na mesma linguagem. São esferas esculpidas em bronze, abertas ao meio, dispostas no chão ao mais cuidadoso dos acasos. Cada semi esfera é apresentada em duas maneiras distintas, ora com o seu volume interno preenchido, ora vazio, como invólucro que abarcava um segredo que se partiu.

António Neves Nobre é representado pela galeria 3+1, ao lado de artistas como Adriana Proganó, Alberto Carneiro, Carlos Noronha Feio, entre muitas outras figuras com elevado grau de excelência artística. Apesar de ter trinta anos, não, não vou adjetivá-lo como jovem (apesar da urgência nacional em fazê-lo), uma vez que o seu percurso artístico demonstra a solidez e a maturação digna de retirar o preâmbulo da juventude da sua ocupação. No ano passado, foi o vencedor do New Talent Award pela DRL e Viarco, além de estar presente em diversas coleções como a Coleção António Cachola, e ser o cofundador do espaço expositivo Uppercut em Lisboa.

As suas obras denotam uma indefinição do media utilizado no suporte, o que lhe conferem uma incógnita relativa aos procedimentos de criação. Segundo a informação que recebi da Galeria no dia da visita, o próprio artista decidiu por não ter textos de sala em todavia, pela justificativa de que queria que o espectador tivesse a experiência mais pura possível, sem influências anteriores.

Devo dizer com louvor que foi a melhor decisão que ele poderia ter tomado.

Chega-se à entrada da Galeria, e a sua montra envidraçada já anuncia a qualquer transeunte o mistério que irá suceder-se no interior da exposição.

O primeiro impacto gerado por um dos exemplares das pinturas azuis, como carinhosamente apelidei-as na minha cabeça, é sobre a nuvem de mistério que a sua presença emana. O azul é tão profundo e sólido à primeira vista, que os olhos urgem por uma vista mais próxima. À medida em que se aproxima da obra, temos os nossos sentidos absorvidos pintura a dentro, pela profundidade alcançada mediante os pormenores que despontam no compasso do piscar das nossas pálpebras. A cor antes sólida esvai-se em nuances infinitas, como uma espreitada no microscópio da aula de ciências. Quando dei por mim, já estava presa na imensidão azul, pelas linhas e formas que faziam da minha saída uma impossível cama de gato a destrinçar. Nobre tinha a minha atenção.

Quanto mais adentrava no corredor da Galeria, mais a sensação de estar submersa fazia-se presente. No primeiro piso dispõem-se não uma, ou duas ou três, mas sim quatro exemplares das “pinturas azuis”. Admirá-las por muito tempo, assim como eu fiz, requer um esforço abissal para que se consiga desviar a atenção para outras peças, já que o seu magnetismo assenta na perceção das infinitas individualidades e rugosidades apontadas por Nobre em cada uma das superfícies pictóricas.

Um dos camafeus, ou melhor, esculturas de bronze, dispõe-se na entrada da escada e conduz o visitante ao segundo piso no nível inferior da galeria, onde encontramos os restantes dos seus familiares. Cada uma das esculturas, assim como nas pinturas, proporcionou reações diversas. Algumas causaram estranheza e asco pelas rugosidades proeminentes, mas outras, em especial a do piso inferior ao lado direito, suscitaram-me uma perceção de estar a admirar algo de muito sensual. A cada movimento do meu globo ocular, crescia uma sede em percorrer as curvas interiores das peças, numa inebriante paixão em saber mais, assim quando ouvimos um novo sussurro de um segredo infame.

O último terço visual da exposição é comandado pelas ‘pinturas roxas’, sim, mais uma alcunha não autorizada. Estas partilhavam entre si uma particularidade além da sua cor, pois dispunham de uma divisão vezes central ocasionada pela colocação de uma linha vertical acima da sua base inferior. Facilmente, ao invés de repousarem na parede de uma galeria, poderiam estar na parede de um altar, pois conferem contornos de meditação quando admiradas por muito tempo. A sua linha ascendente central assemelha-se ao vesgo de uma folha, ou a um rio que corta uma floresta, e vai dar em algum lugar fulcral e nuclear.

Finda a exposição, resta só ao visitante dar meia volta e sair da galeria fazer os ponteiros do relógio voltarem a funcionar e voltar ao seu quotidiano ínfimo após esta experiência estética inebriante.

Concluo que Todavia é de facto uma exposição sobre a hermenêutica do universo, pois ela fala sobre nada ao mesmo tempo em que goza de tudo, numa dicotomia digna de uma conjunção subordinativa adversativa. Goza das cores, das linhas, das saliências, dos pormenores, das estruturas, numa disparidade impressionante com aquilo que o figurativo chama de real. Apesar disto, concentra em todas as suas peças o que é mais puro e elementar da realidade. O que? Eu ainda não sei, mas se tivesse mais cinco minutos com algumas das obras de António Neves Nobre, poderia ter a chance de descobrir. Assim como quando enfrentamos os maiores dos vícios inebriantes, o de saber mais. A maior característica comum das obras expostas em todavia é esta, a de provocarem sede no espectador de olharem um bocadinho mais.

Maria Eduarda Wendhausen (Rio de Janeiro, 2000). Licenciada em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e é aluna do mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela mesma instituição. Estudou também na Sotheby's Institute of Art no curso Writing for the Art World, From Idea to Submission. Atua como escritora e curadora na cidade de Lisboa, Portugal. Colaborou com o Manicómio no espaço de exposições Pavilhão31 e com a Carpe Diem Arte e Pesquisa. A sua última atuação como curadora, realizou-se na ARCOLisboa2022 com a exposição CRACK THE EGG do Prémio Arte Jovem Millennium bcp, em 2022. Em 2023, começou a colaborar com a CentralC como content manager. Escreve regularmente para revistas científicas e especializadas como freelancer no ramo da crítica da arte, assim como features e ensaios académicos, com o intuito de divulgar e promover para o público geral, as múltiplas facetas dos estudos artísticos e os seus desdobramentos na vida quotidiana.

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