Ressurreição: Inês Zenha na Kunsthalle Lissabon
Até dia 25 de março está patente na Kunsthalle Lissabon a exposição Ressurreição, de Inês Zenha (n. 1995), artista de nacionalidade portuguesa, a viver e trabalhar em Paris.
Numa exploração em torno dos códigos de representação, formal e conceptual, do corpo queer, a produção artística de Zenha tem abrangido vários suportes, desde a pintura à instalação, passando pela escultura e a cerâmica. Ciente da violência que os valores normativos, hetero-patriarcais, exercem sobre aqueles que deles se distanciam, em Ressurreição apresenta um conjunto de peças que, entre o vegetal e o humano, nos parecem aludir, metaforicamente, à construção híbrida da identidade. Numa instalação marcada pela água que flui e liga os vários elementos, põe em ação o entendimento de que a identidade não pode nem deve ser concebida enquanto expressão estável e imutável, mas sim enquanto organismo vivo, constantemente sujeito a novas, e por vezes imprevisíveis, articulações e transformações.
A primeira impressão da exposição dá-se ainda antes de entrarmos na sala, no momento em que a vibração sonora da água corrente começa a atravessar-nos o corpo. Descemos as escadas e somos confrontados com Diante de olhos armados, trespassa (2023), instalação concebida especialmente para a ocasião. Uma cortina construída pela repetição de pequenas unidades escultóricas em forma de mama, construídas em cerâmica branca. Na sua repetição parecem caminhar para a abstração, libertando-se de códigos pré-estabelecidos.
Aceitamos o desafio e trespassamos a cortina. Deparamo-nos com uma instalação onde corpos-fonte libertam água, onde plantas cerâmicas tanto vivem submersas no espaço aquático, como brotam em resistência a estruturas que as limitam, encontrando lugares outros onde habitar – Ergue-me a voz (2023). Um ecossistema onde tomam existência seres híbridos, fundados na associação entre órgãos do sistema reprodutor e o universo botânico, expressos na sua interconectividade, em estruturas ligadas pela água que corre e por tubos de escoamento. Em Tão só um corpo em confissão (2023), a água que corre do chuveiro vai molhando as mamas de argila, levando-as progressivamente à desintegração. O resultado dessa ação é o barro informe que vemos caído, o corpo maleável, limpo de constrições. Em Pia regeneradora (2023), escorre de um azulejo-ânus a água que enche a pia batismal, onde habita um ser vegetal semelhante a uma planta carnívora, cujos “dentes”, nos parece, nos prenderiam os dedos caso nela puséssemos a mão. Purifica-me no teu devir-água (2023), uma orquídea-vulvular sobre um arco em ogiva, elevada a ícone religioso. Dela brota a água que corre pelos urinóis em direção ao espaço aquático onde habitam plantas exóticas.
Numa instalação onde o som da água e o branco dos azulejos nos remete para as casas-de-banho e balneários, espaços que obrigam à categorização pública dos corpos, onde nos vemos obrigados a optar pelo lado masculino ou feminino, é precisamente pela necessidade de transcender o género que pugna a exposição, afirmando uma forma de viver para lá do binário. De facto, ao mesmo tempo que alude à capacidade das plantas se adaptarem e regenerarem, a exposição aponta também para o campo da ciência, da botânica, da religião e até da biopolítica, sublinhando a forma como estes domínios sustentam e disseminam uma conceção essencialista do género, normativa e binária, que violenta e exclui aqueles que nela não se reveem.
Dessa forma, encontramos em Ressurreição, a subversão do conceito de identidade una. Pela força da ambivalência e do transgénero, chegamos a um lugar que se estabelece na variação e no deslocamento, sabotando conceções autoritárias e totalizantes. Um lugar que nos faz entender a importância da ambivalência para transtornar e perturbar o policiamento dos corpos e dos modos de viver. Um lugar que transgride qualquer projeto de discurso dominante, sugerindo a impossibilidade do essencialismo. O encontro plural de corpos, matérias e elementos moventes que a exposição põe em cena assume-se assim como altamente prolífico, apontando para um devir onde se estabelece o caráter performativo da identidade. A identidade que está em fluxo permanente e onde o híbrido toma protagonismo, em oposição e resistência ao concreto, ao totalitário, ao sólido e ao estático.
Estas são também peças de imanente sensualidade e de intenso e imaginativo erotismo. E é também pelo erótico, na aceção de Audre Lorde, poeta negra, feminista, lésbica e mãe (como a própria se definia), que entramos na obra de Inês Zenha. Em “Usos do Erótico: o Erótico como Poder” (1978/1984), manifesto escrito em prosa poética, Lorde define o erótico como «um recurso dentro de cada uma de nós (…) firmemente enraizado no poder do nosso sentimento (…)», uma «fonte de poder e informação nas nossas vidas»[1]. Para além da dimensão sexual, Lorde associa o erótico ao gozo, à intimidade e criatividade, ao medo, à dor, à revolta, ao conhecimento, ao poder e à espiritualidade. O erótico diz respeito aos nossos sentimentos mais espontâneos e profundos, que se assumem como um poderoso guia à análise do que há de mais natural em nós. Uma afirmação de força vital, uma energia criativa empoderada, onde o conhecimento profundo do Eu se manifesta na «nossa linguagem, na nossa história, na nossa dança, no nosso amar, no nosso trabalho, nas nossas vidas»[2]. Assim, Lorde eleva o erótico, na sua conceção mais lata, a uma forma integrada de conhecimento e poder que devemos reivindicar e utilizar para identificar opressões internalizadas e enfrentar e questionar criticamente o mundo, percebendo os modos como ele não só não nos serve como nos condiciona: «Em contacto com o erótico, fico menos disposta a aceitar a impotência, ou aqueles outros estados de ser fornecidos, que não são nativos para mim, tais como a resignação, o desespero, o auto-aniquilamento, a depressão, a auto-negação.»[3].
Parece ser precisamente desta natureza a força que pulsa em Ressurreição. Através da sua prática artística, explorando políticas queer e de género, Inês Zenha reivindica esse poder de agência e o direito à auto-conceção do Eu, numa multiplicidade livre de constrangimentos impostos por normas exteriores que beneficiam e alimentam sistemas estabelecidos de opressão, violência, marginalização e exploração. A expressão desta força afirmativa, que tem origem na exploração do erótico, na profundidade e entrega emocional de Zenha, impacta-nos no seu pugnar não só pelo direito à transformação, como pela necessidade de transformação libertadora, purificadora, de uma sociedade que vive e aprisiona nos seus códigos artificiais e pré-estabelecidos.
Ao mesmo tempo que direciona a imaginação para a conceção, no presente, de futuros libertadores, na empoderada partilha que a exposição encerra, Inês Zenha parece transmitir-nos o que em tempos Audre Lorde declarou: «(…) há tantas formas pelas quais sou vulnerável e não posso deixar de ser vulnerável, não vou ficar mais vulnerável ao colocar armas de silêncio nas mãos dos meus inimigos».
Uma ode à transformação livre e ao estilhaçar de silêncios castradores. À exploração do género para lá do binário, e à conceção de uma expressão de identidade mais inclusiva, que flui como a água que corre entre os corpos híbridos em Ressurreição.
Ressurreição, de Inês Zenha, está patente na Kunsthalle Lissabon até 25 de março de 2023.
[1] Lorde, Audre (1984). “Uses of the Erotic: The Erotic as Power” in Sister Outsider: Essays and Speeches. Nova Iorque: The Crossing Press Feminist Series. p. 53. Tradução própria. «a resource within each of us (…) firmly rooted in the power of our (…) feeling. (…) a source of power and information within our lives».
[2] Lorde, Audre (1984). Ibidem. p. 55. Tradução própria. «(…) in our language, our history, our dancing, our loving, our work, our lives.»
[3] Lorde, Audre (1984). Ibidem. p. 58. Tradução própria. «In touch with the erotic, I become less willing to accept powerlessness, or those other supplied states of being which are not native to me, such as resignation, despair, self-effacement, depression, self-denial.»