Top

Dobra Sol – Mariana Caló e Francisco Queimadela na NO·NO Gallery

Uma coisa que atravessa outra gera um encontro. No encontro o olho enche-se de luz e as imagens crescem irrigadas pelo Sol. Mas as hipóteses para o encontro não se circunscrevem a um ponto fixo. Ou a uma estrela. Há quem prefira ler o encontro pela via do ângulo reto. Um ponto que se desdobra em duas linhas. Numa pintura de vidro a opacidade da matéria dá lugar à translucidez. Nela, as formas apresentadas não agem sozinhas no espaço reservado para a pintura. As formas, figuras e cores, são atravessadas por elementos externos aos meios implicados na própria pintura.

Através da fachada de vidro da NO·NO Gallery, o nosso olhar cruza-se com as pinturas suspensas de Mariana Caló e Francisco Queimadela, sete pinturas em vidro, uma parte daquilo que apresentam na exposição inaugurada a 7 de abril, Dobra Sol.

No espaço da galeria, as pinturas suspensas (Dobra Sol, 2022), convocam os seus duplos – elas são vivas -, como o fluxo que inspira o ar que atravessa espécies animais e vegetais. O Sol desdobra-se em milhares de corpos que se nutrem à sua passagem, e ao serem atravessadas pela luz solar, também as pinturas de Mariana Caló e Francisco Queimadela se desdobram nas paredes da galeria, reproduzindo-se.

Tal como para os vivos, a luz é um princípio criador.

De modo a que se assistia ao desdobramento das pinturas no espaço da galeria, é necessário permanecer na dobra do tempo, no momento exato em que o Sol escava fendas céu adentro, dobrando-se na paisagem a fazer-se encontro. Umencontro que se faz do brilho de formas movediças projetadas na parede. Falamos de pinturas-movimento, que devido à porosidade da matéria que as constitui, se expandem flutuantes pelo espaço, negando um ponto fixo, abraçando o descontínuo, o passageiro. Porque nem tudo o que atravessa permanece.

No entanto, poder-se-ia pensar que o potencial destas pinturas não permanece alojado apenas do lado da luz. Os duplos de cor e movimento que pintam as paredes da NO·NO Gallery, fazem da sombra um espaço de afirmação, uma vez que é mediante essa iluminação – do que não tem corpo -, que dizemos que as pinturas se revelam – elas fazem-se corpo a partir desta relação dialética que as (re)ativa, ou desdobra.

A luz também dá lugar ao seu contrário, e na escuridão, podemos assistir a Palomacia (2022). No vídeo a que podemos assistir no piso inferior da galeria, a noção de dobra é sugerida como hipótese para pensar relações entre comunidades e espécies, relações que se estendem para lá das potencialidades humanas, como é sustentado pelo filósofo Michael Marder, cuja voz se escuta à velocidade das imagens.

As asas que infinitamente repetem um movimento – dobrar e desdobrar – são mostradas em Palomacia. No vídeo encontramos imagens de duas pombas brancas, por sua vez multiplicadas em várias, algo que repete o movimento reprodutor a que assistimos do lado do Sol.

As aves, como podemos escutar nas palavras de Marder, são veículos de transporte – de sementes, esporos ou pólen – um gesto vital para a garantia de vida no planeta, no qual o acolhimento de matérias primas é temporário. O acolher – dobrar -, dá lugar ao seu contrário, e as sementes e matérias vitais migram para outras espécies e superfícies – desdobrando-se -, como a luz. Este movimento implicado na dobra, estende-se também às plantas. Dobrando-se e desdobrando-se sobre si mesmas, as plantas alinham no encontro com o fluxo vital que circula entre tipologias de seres vivos. O fundamento da dobra: “desdobrar-se noutras formas de existência”, qualquer coisa que parece chamar Gilles Deleuze, Félix Guattari e a geofilosofia, que tal como as palavras de Michael Marder, se foca não naquilo que é fixo, territorial[1], mas no que se movimenta – o trânsito -, para o qual a porosidade implicada no atravessamento é fundamental.

As mãos humanas são também mostradas em Palomacia. As mãos que podem ser as nossas asas, que são também veículo. As mãos que se dobram e desdobram uma vida inteira. Como as asas dos pássaros. ou como o coração.

“Ontem era manhã da mão e ave

emboscada na folhagem e agora o que

resta do acto ainda é o acto aqui acto do pássaro”[2]

Dobra Sol, está patente na NO·NO Gallery até 28 de maio de 2022.

 

“(…) vimos já que a terra não cessa de operar um movimento de desterritorialização no mesmo lugar através do qual ultrapassa qualquer território: é desterritorializadora e desterritorializada. Ela própria se confunde com o movimento daqueles que abandonam em massa o seu território, lagostas que se põem a caminhar eme fila no fundo da água, peregrinos ou cavaleiros que cavalgam uma linha de fuga celeste. A terra não é um elemento entre o outros, reúne todos os elementos no mesmo abraço, mas serve-se de um ou de outro para desterritorializar o território.”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Trad., Margarida Barahona e António Guerreiro, Editorial Presença: Lisboa, 1992, p. 77

[2] Excerto do poema nº6, em, António Ramos Rosa , O Incêndio dos Aspectos, A Regra do Jogo: Lisboa, 1980, p. 20

Rita Anuar (Vila Franca de Xira, 1994), é investigadora interdisciplinar, licenciada em Ciências da Comunicação, Pós-graduada em Filosofia (Estética) e mestre em História da Arte Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Integra o grupo de investigação em Literatura, Filosofia e Artes (FCSH/IELT), desde 2020. Interessam-lhe os cruzamentos entre artes visuais, filosofia e literatura, a indisciplina e o vento. À parte da sua atividade como investigadora, escreve poesia.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)