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IRL Stories: À Conversa com Ghetthoven

O mundo ultrapassou longos períodos de isolamento face à pandemia global que, até à data, causou mais de um milhão de mortes. Espaços culturais encerraram indefinidamente os seus palcos, pistas de dança e galerias, deixando toda uma indústria criativa em risco de sobrevivência. Que impacto tiveram estes tempos na relação dx artistx com a sua Arte e o mundo?

IRL Stories retrata como performers pela Europa se estão a adaptar a estes tempos de mudança radical. Dada a crescente digitalização de tudo o que nos rodeia e a atual crise global de experiências IRL (in real life), a série reflete sobre identidade e resiliência na comunidade artística através de um olhar íntimo sobre novas perspetivas. Cada história é fotografada em médio formato e escrita pela artista portuguesa Rita Couto, inclui um ensaio pessoal seguido de uma entrevista centrada no processo criativo de cada artista e a utilização de meios alternativos para comunicar com o seu público.

 

IRL Stories: À Conversa com Ghetthoven. Maus Hábitos, Porto, 2020. © Rita Couto.

Estamos no final do verão de 2020 e a cidade do Porto tem estado um autêntico deserto. Encontrei-me com Igor Ribeiro (Ghetthoven) na esplanada do café e espaço cultural Maus Hábitos, que me recebeu a dois metros de distância e com um acenar de mão. Conheço o Igor há mais de quinze anos. Tive o privilégio de conviver no meio boémio portuense e observar o percurso deste artista, marcado por uma presença indomável no palco. Desde os espetáculos DIY Jungle Cabaret (2008) realizados no extinto bar Altar na Rua de Cedofeita, passando pelas inúmeras idas a festivais de música nacionais onde corríamos a line-up em primeira fila, até à época em se ouvia uma diversidade de géneros musicais numa só noite em espaços alternativos, como na Fábrica do Som, Os Mutantes ou no underground Gare Clube, não obstante as ideias, sonhos e personas que fiquei a conhecer e mais tarde se materializaram e amadureceram em projetos musicais, como na banda CRISIS, nas festas Groove Ball, nas colaborações com o eclético Moullinex e no seu projeto a solo Ghetthoven.

Todos estes projetos emergentes representam uma forma de reivindicar o potencial criativo de uma cidade que, apesar da crise, continua a revelar a existência de um forte coletivo de artistas independentes, criadores de capital social, comunidades artísticas e atividade cultural não só para a cidade do Porto, mas também para a sociedade em geral. Antes de iniciar o seu DJ set como Ghetthoven, desta vez às 16h da tarde, conversámos sobre o passado e o futuro, mas, acima de tudo, sobre o estado de espírito do momento.

IRL Stories: À Conversa com Ghetthoven. Maus Hábitos, Porto, 2020. © Rita Couto.

Rita Couto – Fala-me um pouco do teu percurso artístico até março de 2020 [início do estado de emergência] e como te tens adaptado a este clima de incerteza.

Igor Ribeiro – Nos dois últimos anos, colaborei imenso com Moullinex, quer no projeto quer na digressão Hypersex, em que fui frontman [vocalista] e performer. Foi muito gratificante, porque me deu muita experiência. Foi a primeira vez que trabalhei com uma banda mais conceituada, acompanhada de uma grande equipa técnica. Entretanto, depois de dois anos e meio a trabalhar… boom! Entramos em pandemia. O nosso último concerto foi em janeiro no Musicbox, em Lisboa. E a partir do início de março parou tudo. Tanto para nós como para milhares de outros artistas, especialmente os que vivem da dança e da música, em que o corpo é a nossa principal ferramenta de trabalho. Foi muito estranho! De repente, ficar sem meios para sobreviver.

Os meios de comunicação têm ajudado imenso. Através da internet tenho participado em live streams, como convidado de outros artistas, por exemplo. No entanto, não me interessa entrar muito nessa lógica de trabalho, porque é algo que não me fascina tanto. É um pouco impessoal.

Avizinham-se tempos bastante estranhos. É quase como aprender a andar de novo e tentar encontrar novas soluções que permitam que essa interação física e direta, que eu tenho com o público, se mantenha. Creio que o potencial do vídeo [videoclips] vai-se destacar cada vez mais. No fundo, sempre foi uma componente inerente ao processo criativo de produzir música e de passar uma mensagem, até porque tem outro tipo de magia.

É necessário haver mais apoios, não só do governo, mas também iniciativas entre coletivos e nichos criativos. O Porto é uma cidade com uma comunidade de artistas incríveis, mas falta criar alternativas de apoio. Nem que seja por iniciativa própria. Recentemente, a label Mera fez um festival online durante três semanas em que convidaram vários músicos para tocar a partir das suas casas ou estúdios. Foi uma transmissão com apoios de crowdfunding, com doações diretas dos fãs. Espaços culturais como o Hardclub, o Passos e o Maus Hábitos também têm dado oportunidades a DJs locais para lá tocarem, o que é muito bom. Foram das poucas iniciativas em direção a um novo movimento, mais autossuficiente e menos corporativo. Acho que, acima de tudo, esta pandemia é uma ótima oportunidade para nos unirmos mais. A arte é feita de partilha – nunca nos podemos esquecer disto. É preciso haver mais união e menos ego.

Por outro lado, o pessoal tem saudades de “ir à missa”. Costumo dizer que esta pandemia veio cortar-nos o ritual de estarmos num club a dançar. Tenho muitas saudades disso, porque é muito terapêutico. E percebo que as pessoas estejam cheias de vontade de voltar a dançar livremente em contacto com outras pessoas. É como um casamento, um ritual em comunidade e a música tem esse poder.

Mas há sempre um estigma em relação à noite, não é? A verdade é que nós, artistas, precisamos da noite. Precisamos da pista de dança porque é uma catarse, tanto para nós como para o público. Quando saio à noite é maioritariamente para ouvir música, pois não gosto de estar no meio da confusão como, por exemplo, quando éramos adolescentes e íamos para o Piolho [café icónico portuense muito frequentado por estudantes]. E foi maravilhoso! Acabámos por conhecer muita gente nessa altura. O pessoal das Artes ligava-se muito, os alunos da Árvore, da Soares dos Reis e das Belas-Artes. Depois veio a cultura do clubbing, dos concertos, das raves, foi um awakening… Tempos de brainstorming, pelo menos para mim. Aprendi imenso, vi imensas bandas e toquei muito, cresci num ambiente em que agora me identifico como artista.

RCFull circle: foste ter ao mesmo sítio, mas do outro lado da ribalta!

IR – Exatamente!

IRL Stories: À Conversa com Ghetthoven. Maus Hábitos, Porto, 2020. © Rita Couto.

RC – Conta-me as tuas experiências mais especiais em palco ou no backstage.

IR – Para mim, tocar no festival NOS Primavera Sound do Porto [2018] e ser a primeira banda portuguesa [Moullinex] a fechar um palco principal em horário nobre… Foi um privilégio, um orgulho enorme. E estás a ver o que é tocar para milhares de pessoas… em tua casa? Nunca tinha sentido algo assim. Eu já tinha trabalhado com vários técnicos de som, roadies, equipas de palco e normalmente fazem o trabalho deles e não vão felicitar as bandas. Contudo, desta vez foi diferente. Houve alguns técnicos que vieram ter connosco no final do concerto impressionados com a nossa performance – foi muito gratificante.

A segunda experiência que me tocou muito foi quando fui tocar o Hypersex à Turquia. A primeira vez foi em 2018 e a segunda em 2019. A Turquia vive numa realidade política muito diferente da nossa, no que diz respeito à diversidade sexual e de géneros não conformistas. Mesmo em Portugal, ainda estamos a evoluir; começo só agora a ver mais empatia e mais respeito pela comunidade LGBTQ+, apesar de ainda haver muito trabalho pela frente. Ainda existem pessoas com mentalidade conservadora e saudosista, que vive muito presa ao passado, o que acaba por ser uma contradição, pois o universo queer faz parte da História.

O Hypersex é um tributo à comunidade LGBTQ+ em que encarno várias personas em homenagem ao drag, Prince, George Clinton, ao estilo fabulous, funky e cosmic. Tocar com Hypersex na Turquia foi ter pessoas a virem ter comigo no final dos concertos muito sensibilizadas, a abraçar-me e a chorar, porque estava a representar algo que não estão habituadas a ver. Como artista, é das sensações mais prazerosas do universo, sentir esta afinidade com o público e saber que o meu trabalho realmente tem um impacto.

IRL Stories: À Conversa com Ghetthoven. Maus Hábitos, Porto, 2020. © Rita Couto.

RC – E que frutos surgiram dos palcos desertos?

IR – Acho que nunca me senti tão criativo como nos últimos cinco meses. O meu disco estava em standby e já estou a gravá-lo há um ano e tal. Porém, vamos voltar novamente ao estúdio e os visuais vão ser gravados em breve. Em casa, sozinho e em quarentena, agarrei no teclado e acabei por fazer um EP, escrito por mim, juntamente com o meu irmão [Leonardo Rocha, da banda Don Pie Pie]. Foi um processo completamente diferente de estar em estúdio com dois produtores e uma banda. Fechado em casa, neste clima de pandemia global, comecei a produzir e a compor tudo de raiz, sozinho. Abracei os meus demónios através do meu lado criativo.

Rita Couto (1989, Porto) é trabalhadora independente na área do audiovisual em Berlim, onde reside. O seu trabalho tem proporcionado visibilidade a entidades, projetos e iniciativas com impacto social e tecnológico. Com uma especial afinidade pela fotografia analógica, Rita tem vindo a documentar o que a rodeia desde a sua adolescência. Ao longo do seu percurso artístico, foi aliando a escrita à fotografia com um interesse por temáticas como identidade, autenticidade e comunidade, tendo desde então retratado as histórias de artistas e coletivos multi-disciplinares em Berlim e pela Europa. O seu trabalho pode ser visitado em rita-couto.com ou instagram.com/dailydimmak.

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