Fotografias: Alípio Padilha.
Um homem, a sua camisa e um ferro de engomar. Combinação explosiva para o quotidiano de qualquer ser humano do sexo masculino, que na imaginação infinita da companhia finlandesa WHS é base para uma das mais deslumbrantes cenas de que guardo memória. Estica, puxa manga, ataca colarinho e placa com ferro. Não há forma de a imobilizar. Uma manga para um lado desafiante, outra arreliadora e os punhos ainda mais libertários. Na ilusão da simplicidade a beleza da magia em estado puro. Tudo simples, de qualidade suprema, mas só possível pelo domínio exímio da complexidade inerente a um espectáculo deste tipo. Na abertura da edição deste ano do FIMFA e na terceira vez que WHS nos visita, uma hora de deslumbramento, o melhor cartão-de-visita para um dos mais estimulantes e absorventes festivais que a cidade acolhe.
De deslumbramento, fascínio e muita melancolia. Diz-se que nos extremos da Europa se concentram os maiores quinhões deste estado de alma. Na apresentação de Lähtö/Départ a relação ao avesso entre um casal, os quadros de tensão, angústia, simultaneamente de ilusão e quem sabe reconciliação, sucedem-se numa matriz plástica desafiante e contínua. As placas verticais transparentes que se reconfiguram para dar forma a uma sala, o vestido que sai do corpo e se afasta, o mar que se esconde atrás da cortina, a projecção de homem sozinho na imensidão da cidade e aquele beijo, aquele beijo tão próximo, que pelo puxar do lençol ou porque cada um se encontra atrás do espelho nunca se concretizou. Pelo menos, ali. Densidade nos temas, leveza na forma.
Densidade temática e leveza técnica foi a abordagem igualmente escolhida pela companhia alemã Puppentheater Halle para a apresentação da peça Buddenbrooks. Baseada no texto homónimo de Thomas Mann, relata-nos a decadência de uma família, os Buddenbrooks, ao longo de duas gerações. A primeira parte mais luminosa, em que todas as ilusões são permitidas. À Tony, a filha mais nova, a liberdade de um amor de Verão, ao seu irmão, vida boémia em Valparaíso e concerto em Londres, aplaudido pela plateia do Maria Matos como se de uma personagem real se tratasse. Realidade na expressão, na capacidade com que os actores desdobram e materializam as marionetas, nos caprichos das figuras quando decidem mandar acender as luzes ou comandar o início de cada cena. Tony, a encantadora Tony de óculos de sol e dança endiabrada no primeiro acto, sucede-lhe a Tony de véu preto e voracidade pérfida aquando das partilhas familiares. A Tony que fixamos entre a retina e o coração; no campo das paixões? A Tony que já só convictamente desprezamos. Sentimos, sentimos humanamente. As marionetas? Mas, são mesmo?
Em época onde a figura humana é cada vez mais articulada nos gestos e expressões e em que as encenações são de calibre fantasmagórico, este é festival imperdível. Até dia 25 de Maio. Sim, e quem não for é ovo podre. Porque aqui tudo é possível.