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Filmica de Pat O ́Neill e Joana Pitta

A Monitor, espaço expositivo assumidamente experimental, satélite em Lisboa da reconhecida galeria italiana com o mesmo nome (sedeada em Roma), volta a destacar-se no panorama nacional pela ousadia que imprime através de algumas das suas propostas de programação. Filmica, patente até dia 6 de abril, volta a reforçar esse posicionamento ao juntar, numa mesma exposição, e colocando num diálogo muito pouco expectável, o incontornável artista e cineasta norte-americano Pat O’Neill (Los Angeles, 1933) e Joana Pitta (Lisboa, 1993), jovem artista portuguesa emergente.

Este encontro improvável resultou, em primeiro lugar, da vontade da diretora da galeria, Paola Capata, de proporcionar ao público português um estreitamento do contato com o trabalho do artista que representa, pioneiro da vertente mais experimental associada ao vídeo, e cuja visibilidade, em Portugal, considera deficitária, sobretudo comparativamente com os circuitos internacionais por onde a obra se movimenta com notoriedade. Recordamos que, entre 2016 e 2017, o Centro de Arte Quetzal dedicou a Pat O ́Neill uma mostra individual (com a projeção de oito filmes) e que Alexandre Estrela exibiu vídeos da sua autoria, em duas ocasiões distintas, no Oporto, espaço alternativo que gere. Inclusivamente, em entrevista, Estrela referiu que um dos screenings que realizou se deveu ao desinteresse manifestado pela Cinemateca Portuguesa em programar uma retrospetiva do autor.

O convite posteriormente endereçado a Joana Pitta surgiu do desafio de colocar em diálogo artistas que, estando geracionalmente tão distantes, partilham um olhar e um registo sobre o quotidiano que acaba por se cruzar, nomeadamente através do entendimento comum de algumas questões relacionadas com a memória. A decisão de reuni-los num mesmo projeto expositivo também se prendeu com uma estratégia pontualmente assumida, por parte da galeria, para funcionar como plataforma de lançamento de jovens artistas portugueses promissores (ainda fora do circuito), que têm assim a oportunidade não só de mostrar o seu trabalho como, neste caso específico, de ver as suas obras em conversação com as de um artista histórico. O percurso que Joana Pitta está a construir está no início, é ainda incerto, mas acreditamos que será bastante promissor; e do seu currículo já consta uma exposição com Pat O’Neill. How cool is that?

Do artista multifacetado (a sua longa e prolífera produção abarca vídeo, fotografia, escultura e colagens) que, no cinema, revolucionou a indústria dos efeitos especiais (criou a Lookout Mountain Studios que colaborou, por exemplo, na saga Star Wars), podem visionar-se, em Filmica, dois vídeos: Bump City (1964) e Down Wind (1973). No primeiro, num registo de captação documental, não encenada, predominam luzes artificiais, sobretudo néons, que remetem para a publicidade e para o ambiente frenético e consumista das grandes metrópoles, culminando a obra com imagens de uma enorme lixeira a céu aberto. Por sua vez, em Down Wind já é explícito o recurso à manipulação de imagens através do uso de diferentes efeitos óticos (como animações, sobreposições, acelerações, grafismos, entre outros), uma das principais marcas autorais de O ́Neill e do seu pioneirismo. A referência à natureza surge em alguns momentos, nomeadamente através da inserção de cenas da vida selvagem e de um concurso de gatos com apontamentos surreais. Mais uma vez surgem alusões à paisagem urbana versus paisagem natural e à tendência destrutiva da primeira sobre a segunda. Com rasgos de alguma ironia, as obras do artista pressupõem sempre uma componente de consciencialização e crítica social, sendo possível encarar os seus filmes como uma espécie de velozes e misteriosos poemas visuais, ou pinturas em movimento, em que se extrapolam as barreiras dos diferentes media.

Licenciada em escultura e, mais recentemente (no ano passado), mestre em multimédia, Joana Pitta apresenta em Filmica quatro trabalhos recentes, inéditos e de difícil catalogação – o que lhes confere grande parte da sua originalidade e virtuosismo. As suas obras resultam, literalmente, do recurso a diferentes media: partem sempre de vídeos que se materializam em foto- grafias, sendo apresentadas em estruturas que, assemelhando-se formal- mente a quadros (sugerem pinturas veladas com diferentes tonalidades), pressupõem sempre uma forte componente escultórica. O processo autoral inicia-se com o registo em vídeo de imagens de que muitas vezes a artista só tem perceção quando visualiza o resultado final. Joana Pitta não encena o registo do quotidiano que capta, deixa a câmara surpreendê-la e também não aplica muitos efeitos e técnicas de montagem. O filme que é projetado aparece praticamente em bruto e é materializado sob a forma de fotografias que são impressas em papel de acetato. A artista projeta o filme e capta fotograficamente cada frame do mesmo, segundo a segundo, respeitando a ordem de sequência das imagens na sua disposição no suporte expositivo. Não é possível aceder frontalmente à maioria das imagens, o espectador precisa de encenar diferentes movimentos performativos para conseguir visualizar, lateralmente, algumas delas, permanecendo outras inevitavelmente inacessíveis. “Durante a maior parte das vezes não vimos efetivamente o que está à nossa frente”, afirma Joana, a quem interessa o lado de simultânea

revelação e ocultação, privilegiando o inacessível, o que está escondido, o que não se vê, o que se intui, os acasos, o que inconscientemente se rejeita ou, até, imagina. O que a artista pretende salientar, acreditando que todos os pensamentos são representados através de imagens, são, em última análise, os espaços de perda de consciência, de distração e total abstração, em que as imagens nos surgem em catadupa, em camadas, descontroladamente – sendo esses os momentos que Joana Pitta aponta como de verdadeira libertação e constitutivos da genuína identidade pessoal de cada um.

Estabelecer paralelismo e diálogos frutíferos entre os dois autores é um dos desafios maiores que a mostra potencia. Interessa a ambos os artistas empreender uma revisão do olhar sobre o quotidiano que é captado num registo bruto, não encenado, quase documental. Esse quotidiano é reconhecível através da memória que vamos inevitavelmente construindo e que manipula a visão que temos do passado e do presente, disseminando-se no futuro. A memória, em Joana, é mais contemplativa e fugaz, e o tempo que desenha mais circular. Pat O ́Neill privilegia a velocidade, a inevitabilidade do corrompimento e uma forte componente de crítica social. Partilham também, clara- mente, a tendência para quebrar as barreiras classificatórias dos diferentes media, jogando com muitos e reinventando-os.

Licenciada em História Moderna e Contemporânea, possui uma pós-graduação em Gestão Cultural e outra em Jornalismo. Fundou, coordenou e foi redactora da revista Artecapital. Foi redactora principal da revista Artes & Leilões e correspondente da revista Arte y Parte. Actualmente trabalha como mediadora cultural sobretudo no Museu Gulbenkian.

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