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Carioquice: a arte brasileira de hoje, no Rio de Janeiro

Denilson Baniwa, de acordo com a classificação realizada pela revista brasileira Artequeacontece, foi um dos mais destacados artistas do país em 2022. Além disso, Baniwa foi também curador – juntamente com Beatriz Lemos – da exposição Nakoada: estratégias para a arte moderna que ocorreu no MAM, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, na segunda metade do ano que passou. Até 21 de janeiro, pode-se descobrir o universo poético do artista na galeria A Gentil Carioca, onde as pinturas de Baniwa preenchem os dois espaços da galeria, trazendo à luz o seu trabalho desenvolvido nos últimos dois anos especificamente para esta exposição, cujo título é Frontera.

Frontera, em espanhol, sublinha a miscigenação de línguas que ocorre, por exemplo, nas áreas da região do Alto Rio Negro – terra natal de Denilson -, que através dessa palavra pretende também chamar a atenção para o processo de descimentos”, ou seja, a migração compulsória de indígenas da Amazónia que se deslocaram para trabalhar em indústrias extrativas, num regime de exploração da sua mão de obra e dos seus saberes. Contudo, a exploração dos povos nativos não aconteceu somente através do trabalho, mas igualmente pela ocupação das suas terras, num processo de violência perpetrada ao longo de séculos, que tinha como finalidade a transformação dos povos indígenas em escravos. Uma situação que ainda não acabou e que Denilson Baniwa pinta, misturando antigos petróglifos – tais como animais totémicos e símbolos de pertença – com os temas das explorações de hoje em dia: o tráfico de seres humanos, o comércio de mulheres, o abandono das tradições, para abraçar as novas culturas trazidas pelo mercado livre”. Um universo que Denilson delineou também no conceito da exposição Nakoada, palavra utilizada pelo povo Baniwa para identificar uma estratégia de guerra para elaborar novas possibilidades de permanência no mundo: se antigamente essa prática era usada para lidar com outros povos nativos, hoje é preciso repensar na Nakoada em relação às culturas não-indígenas.

No MAR, o Museu de Arte do Rio – o museu mais carioca da cidade –, está a decorrer Um defeito de cor, uma grande exposição cujo título é inspirado pelo romance da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, que conta a saga de uma mulher africana que, no Brasil, precisa de lutar pela sua liberdade e reconstruir a sua vida. A exposição desenvolve-se como um caleidoscópio que abrange 400 obras realizadas por mais de 100 artistas, incluindo algumas produções inéditas de Kwaku Ananse Kintê, Kika Carvalho, Antonio Oloxedê e Goya Lopes. Uma perfeita representação do clima quente que se respira a propósito desses temas, onde a primeira perceção – a das cores brasileiras e da ideia fictícia de igualdade promovida ao longo de décadas – é uma armadilha que nos leva a perceber os sentidos mais profundos da diferença e das dificuldades que os afro-descendentes têm que enfrentar no seu dia-dia no Brasil. Vale mesmo a pena uma visita, mesmo para encarar os temas mais caros da arte e da cultura brasileira de hoje.

No mesmo museu, abriu há pouco tempo uma sentida exposição dedicada à cantora Clara Nunes, onde se pode apreciar o acervo de fotografias inéditas tiradas por Wilton Montenegro, em 1976, no bairro da Pequena África, que narram a relação da artista com o Rio de Janeiro e com a religiosidade afro-brasileira.

Outra artista em destaque em 2022 foi Panmela Castro, que tem um trabalho no Instituto Inhotim, na polémica exposição dos jovens negros Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, que foi alvo das críticas do pintor Maxwell Alexandre, que recusou participar numa exposição que, segundo ele, chega fora de tempo e não confere dignidade aos artistas negros, que continuam a ser olhados de uma perspetiva afetada pelo velho colonialismo branco. No Rio, Panmela Castro expõe no espaço do Parque das Ruínas os seus Retratos relatos, ou seja, nove pinturas acompanhadas de relatos das pessoas retratadas.

Esta série foi iniciada pela artista em 2019, a partir das mensagens e depoimentos que ela recebeu de dezenas de mulheres de todo o Brasil: vêm desta forma à tona, juntamente com as pinturas, inúmeras situações de violência, racismo, ligadas à maternidade, mas também muitas histórias de superação de traumas.

Ao lado do Parque das Ruínas, mesmo no bairro de Santa Teresa, está o Museu da Chácara no Céu, dedicado à coleção de Raymundo Ottoni de Castro Maya, ou simplesmente Castro Maya, fundador e patrocinador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1948, e criador da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, tal como da Sociedade Os Amigos da Gravura, para difundir e incentivar a produção gráfica brasileira.

Aqui podemos encontrar a exposição Reler Debret: a partir da produção de desenhos e textos de Jean-Baptiste Debret, pintor francês que foi testemunha dos eventos relativos à independência do Brasil, estão reunidos diversos jovens artistas brasileiros, entre os quais – de novo – Denilson Baniwa, Herbert Sobral, Valério Ricci Montani e a dupla formada por Patricia Gouvêa e Isabel Löfgrena, a refletir, após 200 anos de independência, sobre o conceito de nação e das suas raízes.

A não perder também é a exposição de um, aliás de dois, dos artistas que fizeram a história do graffiti no Brasil nos últimos trinta anos: Nossos Segredos d’ OSGEMEOS, no CCBB. Gustavo e Otávio Pandolfo (nascidos em 1974, no bairro do Cambuci, em São Paulo) são talvez os artistas mais famosos do Brasil, por causa dos traços inconfundíveis das suas pinturas. Pinturas que foram realizadas em todo o tipo de lugares, de telas a comboios, de muros a capas de discos, páginas de revistas, convites, camisas, blusas, caixas de som e qualquer outro objeto que tenha passado pelas mãos desta dupla, que no CCBB narra a sua própria trajetória na primeira pessoa. A carreira dos gémeos, quer dizer, OSGEMEOS, começou com eles ainda adolescentes, na década de 1990, e desde essa época foi um percurso contínuo até alcançarem os melhores e mais eminentes museus do mundo, de Nova Iorque até Milão, do Japão até Londres, onde em 2008 pintaram a fachada da Tate Modern. Uma história de sucesso, que aqui se pode percorrer através de quase mil itens, incluindo obras pertencentes à coleção particular dos dois irmãos.

Da exposição faz igualmente parte uma sala onde são projetados os registos fotográficos da presença de várias obras que foram, entretanto, apagadas, pelo tempo ou por decisão humana, nas cidades onde Gustavo e Otávio trabalharam – uma ocasião para refletir sobre a natureza efémera da arte do graffiti.

Finalmente, estando no Rio de Janeiro, não pode faltar uma visita a uma das casas de artistas mais interessantes da cidade: a Casa Voa.

No bairro da Gávea desde 2017, aqui se hospedam vários estúdios, completamente auto-financiados com a venda de desenhos, livros de artista, roupa e gravuras (hoje em dia também com loja online). Mal entramos nesse estranho mundo/quintal, apercebemo-nos das diversas personalidades e peculiaridades de cada uma das oito pequenas galerias (tantas quantos os artistas residentes) que a compõem: entre outros moradores”, estão Clarice Rosadas, Mateu Velasco, Antonio Bokel e Guilherme Borsatto, que ali irão residir ao longo dos próximos nove meses. Uma verdadeira experiência para quem gosta de descobrir jovens talentos, prontos a serem reconhecidos oficialmente pelo mundo da arte.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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