A enigmática zone de Horácio Frutuoso
«Minha querida, o mundo é tão indescritivelmente aborrecido. Não há telepatia, nem fantasmas, nem discos voadores – eles não podem existir. O mundo é regido por leis de ferro. (…) Na Idade Média a vida era interessante. Cada casa tinha o seu goblin, cada igreja tinha Deus. As pessoas eram jovens. Agora cada quarta pessoa é velha. É aborrecido, meu anjo.»[1].
Num dos diálogos que dão início a Stalker (1979), filme de Andrei Tarkovsky, um dos três personagens que embarcam em descoberta da fugidia Zona, local que se acredita ter o poder de conceder o mais profundo dos desejos, lamenta que o mundo, regrado pela razão, tenha renunciado à crença na maravilha e no mistério. Parece ser precisamente nos meandros do misterioso e enigmático, com obras que cumprem lugares de tensão entre a gravura medieval e a pintura contemporânea, que se estabelece zone, de Horácio Frutuoso, patente até dia 4 de fevereiro no Projectspace, espaço de partilha e diálogo das galerias Jahn und Jahn e Encounter.
Ao longo do seu percurso, Horácio Frutuoso (1991) tem desenvolvido uma prática artística que se estrutura a partir do pensamento e organização de uma pintura onde se cruzam a poesia, o desenho tipográfico, as imagens digitais, a instalação e a performance. Num trabalho assente na relação íntima da palavra com a pintura, revelador de um profundo conhecimento da história e da técnica do meio com que trabalha, tem explorado a linguagem, os meios de comunicação, os códigos sociais de representação e os gestos performativos da vida quotidiana. Simultaneamente, tem desenvolvido vários projetos editoriais, mantendo uma colaboração regular com o Teatro Praga desde 2016.
Em zone apresenta um conjunto de obras que partem de livros de emblemas que proliferaram na Europa entre meados do séc. XVI e finais do séc. XVIII, onde se dava a união entre as fábulas dos poetas, as alegorias clássicas e a arte. Através de um processo de seleção de imagens fragmentárias dessas referências, resgatando-as da narrativa coerente e sequencial em que se inseriam, depurando-lhes a forma e pintando-as em planos de cor sobre linho, o artista leva a cabo um processo de reenquadramento e subversão dos seus significados.
Em 1531 foi publicado o primeiro Emblematum Liber, versão não-autorizada, editada a partir de um manuscrito do jurista italiano Andreae Alciati (1492-1550). A primeira edição autorizada, Andreae Alciati Emblematum Libellus (O Pequeno Livro de Emblemas de Andreae Alciati), foi publicada em 1534. Aí, Alciati concebeu o emblema como um todo composto por três elementos: um lema, um pequeno texto versado em latim, e uma imagem que o ilustrava. Com xilogravuras atribuídas a Hans Schäufelein, que as terá realizado a partir de pinturas de Jörg Breu, o Velho, configuravam retratos alegóricos da humanidade e eventos históricos e mitológicos. Em zone, Horácio Frutuoso resgata, de uma versão comentada de 1608, o emblema Obliuio, paupertatis parens (Esquecimento, pai da pobreza), dando destaque à figura do lobo sobre um carneiro. A presa que se contorce e o predador que se distrai daquilo que tem, para cobiçar o que é incerto: um pastor e o seu rebanho que ao longe se avistam. A agitação de um momento em que tudo pode acontecer, no intenso desejo de alcançar o que nos foge.
Noutra pintura, Frutuoso retoma Prodigiorum ac ostentorum chronicon (1557), livro publicado numa altura em que os fenómenos naturais e a existência de estranhas criaturas eram encarados na Europa como maus augúrios que alimentavam as superstições sobre a chegada do fim dos dias. De autoria do humanista alsaciano Conradus Lycosthenes (1518-1561), esta Crónica de Prodígios e Milagres, é uma antologia de curiosidades e maravilhas naturais, onde é possível ver, através da reutilização de mais de 1500 xilogravuras[2], representações de cometas, monstros, animais exóticos e mitológicos, que ilustravam a descrição de eventos e descobertas extraordinárias desde o início dos tempos até à contemporaneidade. Deste livro, o artista recupera a imagem do fogo. Labaredas laranja e bafos de fumo branco pintados sobre a crueza do linho. O fogo, que tudo toma e ilumina na sua passagem. Força que pode ser tão reconfortante, transformadora e criadora quanto ameaçadora e destrutiva. Somos remetidos para a fogueira que nos aquece as mãos. Para as nuvens de fumo que ascendem aos céus permitindo uma das mais antigas formas de comunicar à distância. Para as chamas que nos pedem tempo para nelas demorarmos o olhar, o pensamento e a imaginação.
Para além das obras supracitadas, resta-nos ainda referir a versão ilustrada[3] de Iconologia, que Cesare Ripa (c.1555-1622) publica em Roma em 1603. Livro de emblemas simbólicos, aí eram representadas figuras alegóricas e respetivos atributos – as paixões, os vícios, as virtudes e disposições psíquicas, as artes e ciências. Obra de larga difusão, traduzida em diferentes línguas, foi utilizada como fonte primária na conceção de imagens alegóricas na pintura e na escultura dos séculos XVII e XVIII. Agora, em 2022, Horácio Frutuoso retoma este dicionário de símbolos, apropriando-se da xilogravura que ilustra o emblema Errore em Della novissima iconologia, versão ampliada de 1624. Neste, vemos representado um homem com hábito de viajante e de olhos vendados. O texto que acompanha a gravura descreve a inevitabilidade do erro na jornada do peregrino, com a venda que lhe cobre os olhos a simbolizar a escuridão em que submerge quando se ocupa com questões mundanas. Na pintura de Frutuoso vemos esse mesmo homem, tateando o caminho com um bastão. A outra mão, laranja cor do fogo anterior, encontra-se no ar, em busca de direção. A privação da visão parece dar acesso a uma realidade secreta, profunda. Obriga a conhecer o mundo de outras formas, a atentar com outros sentidos.
Estabelecendo-se no anacronismo, estas pinturas de Horácio Frutuoso revelam uma forma particular de estar no tempo, interpolando-o, problematizando o presente a partir do passado. Desse modo, encarna o contemporâneo enquanto atitude, nos contornos conceptualizados por Giorgio Agamben. Segundo o filósofo italiano, o contemporâneo não é cativo do seu tempo. A ele adere e dele se distancia simultaneamente. É nesse deslocamento que consegue olhar criticamente para o presente, perscrutar o seu âmago, por entre as fraturas da sua «coluna despedaçada»[4]. Este entendimento, que desarticula a ideia tradicional da contemporaneidade enquanto mera periodização histórica, assume-se como via de acesso à atualidade. De facto, ao evocar objetos que pelo texto e a imagem permitiram construir e disseminar conhecimento, Frutuoso questiona não só o caráter didático e moral dessas fábulas e alegorias do passado, como permite igualmente refletir sobre o modo como nas sociedades do presente, onde nunca foi tão fácil aceder à informação, e onde se vão desenvolvendo auxiliares de memória supostamente mais eficazes, nos lembremos, no fundo, cada vez menos.
Num presente onde parece ir-se instalando um empobrecimento da experiência perante a sua fugacidade e obsolescência permanente, com formas de viver na virtualização, alienação e capitalização das relações, que se esvaziam de sentido e instauram o desinteresse e o aborrecimento, parece de significativa importância o modo como neste conjunto de obras está subjacente o imaginário da viagem, da expedição, do fascínio pela procura e a descoberta. Uma zona de tensão enigmática, de múltiplas camadas que ocultam mistérios e desentorpecem o olhar e o pensamento. Zona que estimula e sugere outras formas de conhecer o mundo, de nos relacionarmos, e de fazer caminho. Na apropriação de símbolos e no deslocamento dos seus significados, estas são pinturas que, para além de possibilitarem a sobrevivência das imagens do passado pela transformação inerente ao próprio processo artístico, permitem o surgimento de novas constelações de possibilidades e sentidos.
zone, de Horácio Frutuoso, está patente até dia 4 de fevereiro no Projectspace das galerias Jahn und Jahn e Encounter. Nestas, é ainda possível visitar até à mesma data as exposições high noon, da artista alemã Hedwig Eberle (1977), e Inhabitants, da artista francesa, a viver e a trabalhar em Londres, Caroline Achaintre (1969).
[1] Stalker (1979). Realização: Andrei Tarkovsky. União Soviética: Mosfilm. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Q3hBLv-HLEc> (13’09’’ – 14’09’’). Tradução própria.
[2] Em 1552, Lycosthenes tinha editado o Liber de Prodigiis (Livro dos Prodígios), compilação de fenómenos ocorridos em Roma entre 249 a.c e 12 d.c., descritos por Julius Obsequens. Esta era uma edição profusamente ilustrada, com cerca de três imagens por página. Muitas dessas xilogravuras foram reutilizadas em Prodigiorum ac ostentorum chronicon. Uma delas, a famosa representação de um rinoceronte realizada por Albrecht Dürer em 1515.
[3] A primeira publicação de Iconologia data de 1593, versão em que os textos não eram ilustrados.
[4] Agamben, Giorgio (2010). “O que é o contemporâneo” in Nudez. Lisboa: Relógio D’Água. p. 21.