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Caring is Sharing na Cabanamad

Há algum tempo, desde meados do século passado – devemos dizer, que há alguma dificuldade de percepção sobre algumas das questões levantadas pela arte contemporânea. Segundo Arthur Danto, as correntes artísticas atuais assentam numa prática cada vez mais dependente do fluxo do mercado e das suas ações flutuantes – legitimadas por críticos, curadores, galeristas e marchands que formam o “mundo da arte” – onde muitos artistas veem os seus discursos sabotados pela necessidade inerente, e óbvia, de sobreviverem sendo um artista full time, enquanto concebem algo com alguma substância crítica.

Além do perceptível esgotamento criativo que uns sofrem devido à importância de adequarem-se aos gostos dominantes e capitalizáveis[1], muitas das vezes este cenário incute numa solidão extrema vista no dia a dia de trabalho do artista. Que tenta espremer, como numa laranja seca que outrora fora sumarenta, as últimas gotas de genialidade do “original”.

É importante dizer que há uma valorização da falácia do artista atormentado pelo mercado contemporâneo. No entanto, é mais importante ainda reconhecermos que sem o contacto dos artistas entre si, não haveria o que hoje entendemos como a arte no seu estatuto atual.

Segundo Bourriard na sua estética relacional, a arte é contacto[2]. E, é sobre a mesa desta afirmação que se irá construir este artigo, realizado a quatro mãos sob a metáfora da constante da troca na qual constitui-se um match de ping-pong. A exposição coletiva Caring is Sharing, com a curadoria de Francisco Trêpa, estará patente até o dia 17 de novembro na galeria CABANAmad.

PING

Caring is Sharing é um exercício estético desenvolvido a partir do convite da galeria, que há quatro anos, desenvolve projetos expositivos assentes na filosofia do encontro entre artistas nacionais e internacionais na zona central de Lisboa. O curador desta exposição, Francisco Trêpa, revelou que o ímpeto em realizar a mostra surgiu da vontade em repensar a lógica das exposições coletivas. Que, segundo o próprio, são coletivas no sentido em que expõem um conjunto plural de artistas, mas que muitas vezes não propõem um diálogo entre os mesmos.  Formando assim, um arquipélago de matérias isoladas assentes num white cube. Caso este que propiciou a vontade do curador em gozar da fortuna, no seu sentido mais lato.

Trêpa selecionou então alguns artistas; Beatriz Coelho, Carlota Bóia Neto, Eva Gaspar, Gabriel Ribeiro, Maria Máximo, Matias Romano Aleman, Pedro Barassi e Pedro Moreira, assim como algumas das suas obras.

Cada obra escolhida foi designada a outro artista que deveria trabalhar em cima da peça original, criando assim um contacto relacional independente da narrativa curatorial. Tal esforço permitiu que cada artista expusesse duas peças, a partir de uma lógica de encontros propiciada pelo maior dos jogos dos acasos, o do sorteio.

PONG

Algumas das maiores efusões assistidas na história da arte recente foram realizadas em contextos relacionais. Picasso e Braque, Johns e Rauschenberg, Smith e Mapplethorpe, O´Keefe e Stieglitz, Sarmento e Calhau, etc. São exemplos de artistas que se influenciaram mutuamente ao longo das suas carreiras, e que possivelmente não desenvolveriam o seu trabalho da mesma forma caso não estivessem em contacto permanente. Inclusivamente, em 2018, Paul Ingram e Mitali Banerjee, publicaram um paper no qual analisaram a correlação entre a fama, a criatividade e as relações sociais de um artista. De modo que vieram a constatar que: quanto mais diversa for a rede de conexões sociais que um artista desenvolve ao longo de sua carreira, mais estatisticamente provável é que este ascenda à fama pelos seus trabalhos[3].

Neste mesmo sentido, assistimos – desde os espetáculos apresentados no Cabaret Voltaire no início do século passado, até a criação de coletivos artísticos mais recentes como o COBRA, o Fluxus, a Amber Film and Photography, etc – à importância inerente ao trabalho colaborativo para a elevação do diálogo artístico. Facto este que se tornou cada vez mais explorado no contexto contemporâneo. Um exemplo disto, é a Documenta 15 apresentada em Kassel, que contou com um número nunca antes visto na história da mostra de coletivos artísticos. Além de uma direção artística coletiva e heterogênea do grupo indonésio ruangrupa, que salve as polémicas envolvendo a questão complexa do antissemitismo de algumas das obras apresentadas, realizou uma mostra independente de discursos verticais no coração da verticalização dos discursos, o ocidente europeu.

No entanto, os coletivos artísticos trabalham sob o paradigma de um único guarda-chuva erguido pela força do diálogo entre os indivíduos que o constituem, facto este que não é o caso de Caring is Sharing. Esta apresenta um conjunto de artistas que trabalharam individualmente sobre as percepções levantadas pelo trabalho do outro em obras inéditas.  Sob este mesmo escopo, pode-se traçar um paralelo ambicioso no que tange a concepção das exposições feitas pela óptica do contágio, como a Solaris Chronicles, co-curada por Liam Gillick, Hans Ulrich Obrist and Philippe Parreno no LUMA, em 2014.

PING

Em Lisboa, no caso de Caring is Sharing, foram construídos nos dois ambientes da galeria uma constelação de circuitos fechados, no sentido em que cada artista só dialoga com um outro – contrariando assim a lógica de uma exposição coletiva totalmente impregnada. Desengane-se quem esperava uma espécie de jogo do “telefone estragado” sem início nem fim. Isto não se trata da criação de um eterno retorno, não é cíclico; é uma estrada de sentido único. Apesar disto, são sentidos dois momentos distintos na exposição, particulares a cada sala, que apresentam conversas conjuntas ao acaso da estética.

No primeiro momento, na sala frontal a porta de acesso a CABANAmad, apresentam-se cinco diálogos. Segundo Trêpa, num dos diálogos, foi proposto a Matias Romano Aleman que concebesse uma obra através da sua percepção da peça Trac (2022) de Gabriel Ribeiro. Este contacto resultou na captação de uma memória familiar de Romano materializada na peça My father (2022).

Destacamos também o fulgor em elevar o estatuto do invisível que assenta no intermédio da relação entre as peças de Beatriz Coelho, Sem título I (2022) e a Trinco (2022) de Eva Gaspar. Um abismo de infinitas possibilidades não outorgadas pela sedimentação do visível. As relações etéreas de Maria Máximo e Pedro Moreira, assim como as de Carlota Bóia Neto e de Pedro Barassi também constituem esta mesma sala.

PONG

Se na primeira, somos convidados enquanto visitantes a experimentar a suspensão da possibilidade, na segunda sala somos puxados ao purgatório pelo peso das relações ali apresentadas.

Acentuamos, portanto, a expressão: exercício estético. Este manifesta-se precisamente pela forma de uma exposição, sendo essa a sua finalidade. Mas que – e tal como a lógica que se aplica a uma residência – nos obriga a refletir acerca do contexto de produção de algumas das obras aqui presentes. Atenta-se assim, à relação criada entre a obra Promessas e Milagres (2022) de Eva Gaspar com a obra Hiatus (2022), de Maria Máximo. Onde ambas apresentam, para além do que se poderia chamar de corpo principal da sua obra, um apêndice. Esse apêndice consiste numa espécie de síntese – mais simbólica do que outra coisa – do processo de produção.

Ora, tanto a seleção da obra de Eva Gaspar, que beneficia destas características (projeção), para uma linha de partida deste exercício; como a inteligência de Maria Máximo ao apresentar juntamente com a sua obra os desenhos preliminares da mesma, contribuem para a criação de umas das relações mais interessantes da exposição – que não seria possível, claro, se as obras não fossem também interessantes.

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Francisco Trêpa, o curador de Caring is Sharing é também artista, facto este que adiciona uma nova camada referenciativa. Uma vez que, o limiar entre as duas posições – ser artista enquanto pratica-se a curadoria, potencialmente seja um dos sítios mais problemáticos de se habitar no “mundo da arte”. O artista-curador é um espaço liminal onde ouvem-se alegações negativas; tanto de artistas, quanto de curadores, sobre o perigo inerente em cair nos jogos de interesse. No entanto, Trêpa recorda positivamente, nesta exposição, a capacidade inventiva proposta pelo liminal de encargos, que inclusivamente, foi a responsável por conceber a curadoria independente do contemporâneo.

(…)

De repente, não se ouve mais nada. A sucessão constante de sons emitidos pelo contacto entre o aparato do jogo e a mesa cessam-se – a partida acabou, ou, saímos porta a fora da exposição. Caring is Sharing não se caracteriza pela sua rivalidade, pelo contrário, como o seu próprio título já indica, o ato do cuidado assenta-se na partilha. Uma vez que, o contágio entre as individualidades de cada artista é a característica que traz o fulgor para esta exposição, pois é “uma forma de arte que parte da intersubjetividade (…)”[4].

A exposição, patente até o dia 17 de novembro, reflete o seu próprio zeitgeist, mas, apresenta na sua substância crítica a materialidade dos encontros, o que é algo raro no contemporâneo.

Por isso, quando for visitar a mostra, aconselhamos:

– Vá com um amigo. 

 

O artigo foi escrito por Maria Eduarda Wendhausen e Tiago Leonardo.

 

 

 

[1] Danto, A. (1997). Después del fin del arte. Barcelona: Paidós

[2] Bourriaud, N. (1998). Relational Aesthetics. Paris: Les Presse Du Reel.

[3] Fame as an Illusion of Creativity: Evidence from the Pioneers of Abstract Art. (2018, 1 de agosto). HEC Paris Research Paper No. SPE-2018-1305. Columbia Business School Research Paper, 18(74), 46. https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3258318

[4] Ibidem, op. cit. (1998)

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