Os espaços no espaço: três americanos em Milão
A chegada do outono trouxe a Milão três exposições que fazem a diferença; aliás, merecem uma visita obrigatória se por acaso estiverem na cidade italiana.
Por mérito da Fundação Trussardi e sob a curadoria de Massimiliano Gioni (diretor do New Museum em Nova Iorque), apresenta-se em Milão um projeto especial do artista americano Nari Ward (Jamaica, 1963). A história do método de Trussardi de construir exposições não é nova, mas continua fascinante: uma vez por ano, desde 2003, a instituição leva até um lugar público da cidade um grande artista, que desenvolve um trabalho específico ligado ao ambiente circundante. Neste caso, as instalações monumentais e variáveis de Nari Ward encontram-se na Piscina Romano, uma das mais populares e frequentadas nos verões milaneses.
A principiar o percurso, na área do vestiário, temos Amazing Grace, obra já bem conhecida do artista, pois foi realizada em 1993 durante uma residência no Museu Studio no Harlem, tendo viajado ao longo de quase trinta anos pelo mundo, em dezenas de exposições. Amazing Grace é composta por mais de trezentos carrinhos de bebé que Nari encontrou abandonados nas ruas de Manhattan, um objeto simbólico em relação aos sem-abrigo, a quem não possui nada, assim como aos novos migrantes que fogem das guerras e perseguições. Mas é ao sairmos para o parque que o nosso olhar fica abalado pelo verdadeiro projeto in situ: o grande tanque da Piscina Romano (que mede mais de quatro mil metros quadrados) transformou-se numa imensa tábua dourada, cuja superfície agora reflete a luz do sol e as variações do céu, por estar repleto de cobertores térmicos a boiar à sua superfície; objetos tristemente conhecidos por serem os primeiros aconchegos que se oferecem às pessoas resgatadas do mar.
Eis revelada Emergence Pool – obra que também acrescenta sentido ao nome geral da exposição, Gilded Darkness(“escuridão dourada”) -, a exibir-se como um trabalho político sem deixar de manter um lado poético íntimo da história da arte e da simbologia, pois o uso do ouro é uma metáfora luminosa para elevar os espectadores até ao caminho divino – basta pensar nos frescos de Giotto ou nas palavras de Pavel Florenskij no seu ensaio sobre o ícone.
Outra luz, outras formas: desta vez no Pirelli HangarBicocca, com a espetacular Neons Corridors Rooms de Bruce Nauman, exposição vinda da Tate Modern de Londres e do Stedelijk Museum de Amesterdão.
Como este grande artista não precisa de uma grande introdução, passemos diretamente para a exposição, que é um conjunto brutal de algumas das obras mais icónicas que ele produziu durante a sua longa carreira: vale a pena relembrar a célebre cascata de assuntos luminosos One Hundred Live & Die (1984) e o irónico, ambíguo e sempre alvo de equívocos Run from Fear Fun from Rear (1972), para além do conjunto de vídeos Mapping the studio (2001) – este último está patente também em Veneza, na exposição individual de Bruce Nauman que decorre até 27 de novembro em Punta della Dogana.
Voltando a Milão: o Pirelli HangarBicocca parece ter sido transformado para a ocasião numa boneca russa, já que se trata, de facto, de uma exposição de espaços que se desenvolve dentro do complexo e difícil antigo espaço industrial, onde cada visitante é convidado a experimentar, aproveitar e medir com o seu corpo os espaços físicos/arquitetónicos criados por Nauman como fossem brinquedos a desafiar a nossa perceção.
O único problema é que Neons Corridors Rooms se apresenta como uma representação de caráter tão científico e monumental a respeito da obra do artista, que o projeto expositivo acaba até por diluir a autoria dos próprios curadores, pois de facto eles são bastantes: Roberta Tenconi e Vicente Todolí com Andrea Lissoni, Nicholas Serota, Leontine Coelewij, Martijn van Nieuwenhuyzen e Katy Wan. É impossível erguer uma “construção” desta dimensão conseguindo manter visível um traço pessoal.
Por fim, na Galeria de Arte Moderna, organizada pela Fundação Furla e comissariada por Bruna Roccasalva, decorre Moving in Space without Asking Permission. Esta exposição individual da artista e ativista americana Andrea Bowers ocupa as salas do nível térreo com um percurso cujas instalações e pinturas têm por objetivo suportar as minorias e encarar os géneros: um espaço de luta social a desenvolver-se através de obras tão fortes nos conteúdos quanto leves e efémeras nas matérias que as compõem; as pinturas de guerreiras modernas são realizadas utilizando papelões colados, enquanto que Political Ribbons, formada por milhares de laços coloridos, abre a exposição, podendo o público enfeitar-se com mensagens de igualdade, antirracistas e sobre a assunção de responsabilidade: Deport Hate, Families do not have borders, No human is illegal.
Como derradeiro comentário, porém, vale a pena sublinhar um facto: é pelo menos um pouco estranho ver três das maiores fundações privadas italianas a impulsionar a arte de hoje sem aproveitar para facilitar o conhecimento dos artistas italianos no seu próprio país. Quer dizer, nem sequer um. Trata-se de uma situação bem conhecida na península, eternamente disponível para abrir as mãos a todos, menos aos seus próprios profissionais, e ainda menos aos artistas. E o que é um facto é que nem desta vez foi exceção. O lamento é sempre o mesmo, mas isso é um outro assunto, para um espaço que não é neste lugar.
Nari Ward, Gilded Darkness – Piscina Romano
Patente até 16 de outubro
https://www.fondazionenicolatrussardi.com
Andrea Bowers, Moving in Space without Asking Permission – Galeria de Arte Moderna
Patente até 18 de dezembro
http://www.gam-milano.com/it/home/
Bruce Nauman, Neons Corridors Rooms
Patente até 26 de fevereiro de 2023
https://pirellihangarbicocca.org